Sábado, 13 Dezembro 2025

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Primeiro livro de Dino D’Santiago, “Cicatrizes”, apresentado em Cabo Verde

Depois de Portugal e do Brasil, foi finalmente a vez de Cabo Verde receber “Cicatrizes”, o primeiro livro de Dino D’Santiago. O músico e ativista apresentou na quinta-feira, 11 de dezembro, a sua estreia literária na Biblioteca Nacional, cidade da Praia, em evento integrado na programação da 5ª edição do Festival Literário Morabeza – Festa do Livro.

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“Sinto que volto a Casa para entregar, ao meu próprio povo, as histórias, memórias e feridas que me moldaram”, declarou o artista, emocionado por completar o que chama de “triângulo afetivo” que alimenta cada página da obra.

“Cicatrizes” é descrito pelo próprio autor como “um autorretrato emocional” que narra as histórias por trás de cada marca que carrega. “O meu corpo tem cicatrizes, mas eu não sou essas cicatrizes. Elas são apenas vestígios da travessia, marcas que denunciam que houve queda, que houve dor, mas também que houve permanência”, escreve Dino. “As feridas transformaram-se em linguagem. E a chegada, enfim, foi boa.”

O livro reúne 50 textos elaborados de forma orgânica durante madrugadas ininterruptas ao longo de 2024, num processo terapêutico de escrita e autoconhecimento. Segundo revelou Lúcia Garcia, Dino enviava cada texto assim que o terminava para a sua terapeuta, a doutora Ivone Borges, e para ela própria, que recebia também dezenas de outros textos que permanecem inéditos.

“Os escritos aqui reunidos não nasceram da intenção de ser um livro, mas foram elaborados pelo autor de forma orgânica”, explicou Lúcia. “Este livro é a celebração de um Dino D’Santiago que já é capaz de reler cada uma dessas páginas sem dor e que vivencia este novo momento da sua trajetória profissional com mais alegria e leveza.”

Nesta obra, o artista partilhou histórias íntimas que vão além das páginas do livro. Uma delas é a origem do seu nome completo: Claudino de Jesus Borges Pereira.

“A minha mãe, como não fala muito bem inglês, nunca associou o ‘Noel’. As enfermeiras insistiram e uma delas, a Lina Setfaro, disse: ‘Olha, o nosso Claudinho é tão bonito’. A minha mãe captou e disse: ‘Já está, o Claudino de Jesus, porque este vai precisar muito'”, recordou Dino, arrancando sorrisos da plateia.

A escolha do nome “de Jesus” tem uma história ainda mais profunda. Antes de conhecer a mãe de Dino, o pai do artista foi a Fátima, em 1979, e pediu à Nossa Senhora que não lhe desse uma grande mulher para ele, mas sim uma boa mãe para os filhos que viesse a ter. “Ele veio para Cabo Verde, comprou o vestido sem saber a medida da mulher e deixou o dinheiro com a minha tia Luz para depois comprar os sapatos quando soubesse o número do pé”, contou Dino, revelando a determinação do pai em casar com aquela que viria a ser sua mãe.

Natural de Faro e filho de pais cabo-verdianos, nascido em 1982, Dino partilha no livro memórias marcantes da infância. Aos 15 anos, quando a família foi transferida do bairro dos pescadores para um apartamento do agrupamento municipal da Beleira, em Quarteira, no Algarve, foi a primeira vez que souberam o que era ter uma casa de banho. Até então, toda a família se banhava numa grande bacia de plástico laranja, com água fria recolhida das bicas distantes.

Os primeiros desenhos de Dino foram feitos de pé, com giz húmido, nas paredes frágeis de contraplacado da barraca onde vivia – experiências que agora se transformaram em palavras e literatura.

“Não queria passar para o meu filho Lucas nem para a minha filha Cléo [as feridas que carregava]. É um livro dedicado a eles para mostrar que o pai procurou toda a vida ser impecável, reproduzir-se, ser igual ao meu pai, ser igual aos modelos que eu admirava, mas eu tinha a minha própria história para contar”, revelou o artista.

Dino divide no livro não apenas as dores, mas também a alegria e a doçura do sorriso dos seus amores maiores, permitindo aos leitores conhecer um pouco mais do “Cláudio no pai e do Cláudio no filho”.

O prefácio de “Cicatrizes” é assinado pela escritora portuguesa, Lídia Jorge, que descreve a obra como “o desfile de muitos seres, todos aqueles que entram na barca do afeto do Dino, e que ele transforma em pares do seu próprio destino”.

Durante a apresentação, Dino agradeceu ao Ministro da Cultura e das Indústrias Criativas, Augusto Veiga, por ter tornado possível a sua presença no festival. “Todos os lugares onde eu estou são sempre produtos de muita boa vontade de pessoas em que eu confio”, afirmou. O artista ficou ainda mais feliz ao saber que os livros ficaram com a Biblioteca Nacional, garantindo que mais cabo-verdianos terão acesso à obra.

Desde cedo envolvido nos movimentos de música urbana global, Dino D’Santiago fundiu soul, hip-hop, batuku e funaná ao longo da carreira. Em nome próprio lançou os álbuns “Eu e os Meus” (2008), “Kriola” (2020) e “Mundu Novu” (2023), consolidando-se como uma das vozes mais influentes da diáspora cabo-verdiana.

Com “Cicatrizes”, o artista expande o seu percurso artístico para a literatura, transformando vivências pessoais em narrativa escrita e reafirmando-se, nas suas próprias palavras, como “autor e leitor da sua própria história”. Agora, como autor, experiencia um novo lugar, o da escuta do seu público leitor e a forma como cada um dos seus textos reverberam e até ajudam a cicatrizar algumas feridas.

A apresentação foi seguida de uma sessão de autógrafos, momento em que o público pôde partilhar com Dino como os seus textos ressoaram nas suas próprias vidas. 

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