O pianista Humberto Ramos está a fazer aquilo que poucos tentaram: transformar a tradição oral da música cabo-verdiana num património escrito e acessível. Com o projeto “Songbook de Cabo Verde”, já publicou oito volumes de partituras dedicados a compositores do arquipélago, num trabalho de autor que combina transcrição musical, edição e divulgação internacional. Nesta entrevista, Ramos explica como nasceu a ideia, os desafios de trabalhar num país onde a maioria dos músicos não lê partituras e o seu sonho de criar uma biblioteca musical para o futuro.
Por: Teresa Sofia Fortes
Voz do Archipelago (VA) – Antes de mais, muito obrigado por aceitar o nosso convite para nos conceder esta entrevista nessa sua breve passagem por Cabo Verde. Conte-nos: como é que nasceu esta ideia do projeto “Songbook de Cabo Verde”?
Humberto Ramos (HR) – Obrigado desde já por me convidarem para esta entrevista. Esta ideia surge no seguimento de um trabalho que já havia desenvolvido desde 2010: um site que criei, o HumbertoRamos.net Letras e Cifras. Notei que havia necessidade desse tipo de material. O meu site já tem milhões de visualizações, porque publico as letras de músicas de Cabo Verde e as cifras. Muitas pessoas que querem tocar música cabo-verdiana consultam o meu site. Daí que cheguei a um ponto em que disse: só as cifras não chegam, é necessário fazer mais. Assim, comecei a trabalhar neste projeto, a que chamo “Songbook de Cabo Verde”. Quero fazer 20 volumes, cada um dedicado a um compositor. Vou escolhendo os compositores; é um trabalho que faço diretamente com eles, porque escolho apenas compositores vivos, de forma a conseguir falar diretamente com eles.
VA – Porquê só 20? Afinal, temos muito mais compositores.
HR – Sim, sei que pode parecer pouco, mas a minha ideia é dar início a um trabalho que outras pessoas possam vir a continuar no futuro. Tenho plena consciência de que não tenho disponibilidade para fazer mais, porque tenho outros projetos em curso e, por isso, pelo menos quero cumprir este objetivo. Depois logo se vê: se achar que tenho tempo para fazer mais, hei de fazer, com certeza.
VA – E deu início a este projeto exatamente com o seu Songbook, não foi?
HR – Sim, sim.
VA – Fale-nos deste seu Songbook, porque certamente há quem não conheça Humberto Ramos.
HR – Conhecer-me, acho que muitas pessoas conhecem, porque sou pianista desde criança. Toquei com quase todos os artistas conhecidos em Cabo Verde. Houve uma fase em São Vicente em que era praticamente o único pianista da ilha e tocava com toda a gente. Depois emigrei, em 1994, e participei em vários projetos, inclusive pertenci ao grupo Mindel Band, em São Vicente, que foi o primeiro grupo a acompanhar César Évora. Gravámos um disco instrumental nessa altura. Já nesse disco há duas composições minhas, duas mornas: uma que é “Frieza” e outra que é “Cercote”. Quando comecei o projeto Songbook, disse: porque não dar também o meu contributo para a música de Cabo Verde? Comecei a transcrever músicas de Luís Rendall, Luís Morais, que eram músicas instrumentais. Então resolvi também compor as minhas próprias músicas instrumentais para dar o meu contributo à prática de música instrumental em Cabo Verde. Daí que o primeiro volume [do projeto Songbook de Cabo Verde] reúne as minhas músicas, compostas de propósito para esse projeto: são 20 temas.
VA – Estive a consultar o seu site e vi que já editou seis songbooks, certo?
HR – Já são oito: Vuca Pinheiro, da ilha Brava, que vive nos Estados Unidos; Jorge Tavares, que é do Maio; Quim Alves, de Santiago; Daniel Lobo, do Fogo; Teté Alhinho, de São Vicente; Tio Lino, da Boa Vista; e há outro de Luís Rendall.
VA – E vi ali também o songbook da Tututa.
HR – O livro das composições da Tututa é anterior ao projeto Songbook (por isso não falei dele) e foi financiado pela filha; eu fiz todas as transcrições. Há também outro livro, este com as composições do Miquinha (Amílcar Spencer Lopes), que também é de antes deste projeto. Não estão dentro desta coleção.
VA – Não estão dentro desta coleção, mas também são songbooks?
HR – Sim, sim, é um formato parecido. O livro da Tututa tem uma complementaridade: é feito para piano e é o único livro que temos em Cabo Verde onde as pessoas podem aprender a tocar mornas ao piano. O livro do Miquinha também tem uma particularidade: tem as grelhas de posições para a guitarra; os songbooks já não trazem isso, entretanto.
VA – Já ouvi muitas vezes dizer que a maioria dos músicos cabo-verdianos só toca de ouvido, que não sabe ler uma pauta. Isso é verdade?
HR – É verdade. Todos sabem que 90 ou tal por cento dos músicos cabo-verdianos não leem música, mas isso não me impede de fazer este trabalho, porque penso que no futuro mais pessoas vão ler. Por isso, não me importo de continuar a fazer este trabalho. E tem outra particularidade: os estrangeiros que procuram a música cabo-verdiana precisam das partituras.
VA – Qual é o processo para fazer estes songbooks? Já encontrou as partituras feitas ou teve de fazer o trabalho do zero?
HR – Não, o trabalho é feito do zero, porque não existem partituras de música de Cabo Verde. O processo é o seguinte: contacto os compositores com quem me interesso trabalhar, explico o projeto, selecionamos as músicas — pois os compositores de que estamos a falar têm acima de 80 composições, e eu só quero fazer 20. Então, é necessário chegar a um consenso com eles. Enviam-me as gravações dos temas e peço sempre que me enviem as letras na forma como as escrevem. Como sabe, em Cabo Verde há um problema de escrita do crioulo: cada um escreve à sua maneira e eu não quero interferir nessa parte. Assim, peço que me enviem as letras; não vou tirá-las do CD nem nada disso. Depois enviam-me as gravações. Ouço essas gravações e vou transcrevendo as músicas deles. No início tentei fazer este projeto com editores, mas notei que era muito mais difícil trabalhar com editores. Então aprendi a fazer todo o trabalho sozinho. Além das transcrições, sou eu que faço a paginação dos livros; a única coisa que não faço é a gráfica. Levo o trabalho a uma gráfica que trabalha comigo em Portugal, já pronto para impressão.
VA – Podemos dizer então que este é um projeto de autor, ou seja, é o Humberto que assume tudo?
HR – Sim, é um projeto de autor. É tudo feito por mim. Cheguei a um ponto em que achei: se quero que isto funcione, terá de ser assim.
VA – A escolha dos compositores é preconcebida, isto é, antecipadamente já sabe com que compositores vai trabalhar (e já sabe quais serão os próximos), ou é algo aleatório, vai escolhendo à medida que as coisas acontecem?
HR – Não, tenho a lista dos 20 livros que quero fazer. Depois contactei as pessoas. Desde o início defini até a numeração dos volumes, mesmo antes de começar o projeto.
VA – E como é que têm reagido os compositores quando entra em contacto e diz que quer editar um livro com as partituras das obras deles?
HR – Para eles é uma mais-valia. Todos os compositores gostariam de ter as músicas escritas, de forma a que perdurassem no futuro tal como as fizeram. Então, acho que a maioria sente que este projeto vem em boa altura. Até agora, as pessoas que tenho contactado têm todas esta opinião: é necessário fazer este trabalho. E os compositores sentem-se honrados por serem contemplados.
VA – No passado dia 1, no concerto do Quim Alves, no Auditório Nacional, falou um pouco sobre este projeto de Songbook. Lembro-me de ter dito que estes livros são destinados às escolas de música. A quem mais?
HR – Faço sempre uma edição de 100 cópias de cada livro. A minha ideia é fazer chegar esses livros a escolas de música a nível internacional, a bibliotecas de escolas e até mesmo às universidades em Cabo Verde. Acho que deveriam ter estes livros na biblioteca para consulta. Não penso que estes livros sejam para pessoas que não percebem de música, para comprarem e terem na estante. Daí que tento selecionar as pessoas que podem ter este livro. O meu objetivo é divulgar a música de Cabo Verde, a música escrita. Não vale a pena uma pessoa que não saiba ler música comprar o livro. Não lhe interessa ter um Songbook.
VA – O livro pode ser comprado online? Como?
HR – Sim, pode ser comprado online. Basta enviar-me um email e, se vejo que vale a pena vender este livro a alguém, não me importo. Mas se não vale a pena, não vendo, porque não há esse intuito comercial.
VA – Tem tido algum feedback das pessoas que compram o livro? Entram em contacto consigo posteriormente para dizer o que acharam do livro e se se sentiram à vontade para tocar as músicas, lendo as partituras?
HR – Sim, o feedback tem sido muito bom. Também tive sorte com a gráfica com quem estou a trabalhar neste projeto: a qualidade do livro é muito boa. Por isso, penso continuar no mesmo caminho. Até agora, pelo menos, não tenho críticas para mudar alguma coisa.
VA – Há pouco falou da questão de ter algumas obras em partitura para piano e outras para guitarra. Mas as outras podem ser tocadas com qualquer outro instrumento?
HR – Sim, as outras estão feitas de forma a poderem ser tocadas em qualquer outro instrumento: guitarra, piano ou mesmo instrumentos solistas, como violino ou outro instrumento qualquer. Também está feito para isso.
VA – Só instrumentos de corda?
HR – Não, todos.
VA – Instrumentos de sopro também?
HR – Sim, também instrumentos de sopro. Inclusive o Songbook número um está escrito, como dizemos, transposto para instrumentos de sopro. Geralmente, por exemplo, a guitarra, o piano e isso, dizemos que são instrumentos em dó. E há instrumentos, como saxofones, que estão afinados de outra forma. Então o meu songbook já contempla também esses instrumentos.
VA – Quem é que gostaria que desse continuidade a este projeto de songbooks de músicas de Cabo Verde?
HR – Não sei, porque não conheço muitas pessoas em Cabo Verde que escrevam música. Primeiro terei de conhecer essas pessoas, e incentivo as pessoas a ajudarem-me a fazer este projeto. Se conhecerem pessoas que fazem isso, posso transmitir-lhes já o que tenho, para não repetirem o que já fiz. Mas até lá, vou terminar este projeto e depois logo se vê.
VA – Disse logo no início da nossa conversa que só faz songbooks de artistas que estão vivos. Há algum artista que já não está entre nós e que lamenta que não esteja, porque gostaria de ter trabalhado com ele?
HR – Não, não lamento. Mas, por exemplo, Luís Rendall, Luís Morais, que fizeram música instrumental, serão contemplados. Temos falta de música instrumental em Cabo Verde.
A versão áudio desta entrevista está disponível no Soundcloud do Voz do Archipelago
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