Sexta-feira, 05 Dezembro 2025

Grande Entrevista

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Orlando Mascarenhas: “O William foi mais do que um investigador. Este livro é a obra de um grande amigo”

Damos hoje continuidade à publicação da grande entrevista feita ao autor e ao biografado da obra “Vida e Obra de Orlando Mascarenhas”. Depois de ouvirmos William Vieira, chega agora a vez do biografado, Orlando Mascarenhas, que, entre memórias, experiências e momentos decisivos da sua trajetória, partilha o que sentiu ao ver a sua vida transformada em narrativa biográfica.

Por: Teresa Sofia Fortes

Voz do Archipelago (VA) – Agora, o nosso interlocutor é o biografado. Falamos do senhor Orlando Mascarenhas. Como recebeu a notícia, dada pelo William, de que ele iria escrever uma biografia sobre o seu percurso de vida?

Orlando Mascarenhas (OM) – Antes de mais, gostaria de cumprimentá-la, Teresa Sofia Fortes, e manifestar a minha satisfação por esta oportunidade de estar aqui consigo. Foi também uma surpresa muito agradável saber que era a Teresa Sofia quem dirige o Voz do Archipelago e que vinha fazer a entrevista. Como o William explicou, conhecemo-nos no Comité Olímpico Cabo-verdiano e criou-se, digamos, uma amizade imediata entre nós. Durante toda a sua passagem pelo Comité estivemos sempre muito próximos, com grande participação e colaboração da parte dele, particularmente nas atividades que eu desempenhava então, porque, no âmbito da Comissão de Ética, havia muito trabalho para levar os valores olímpicos às escolas e às comunidades. Foi um enorme prazer conhecer o William e, quando ele me disse que iria escrever uma biografia sobre mim, claro que fiquei muito emocionado e extremamente satisfeito, porque muita gente já me dizia que eu deveria escrever a minha biografia. Ver o William oferecer-se para assumir esse trabalho deu-me uma grande alegria, porque era algo que eu gostaria muito de concretizar e surgiu alguém com essa disponibilidade, indo ao encontro das minhas expectativas.

VA – E já teve oportunidade de ver o livro finalizado? O que sentiu ao ver a sua vida retratada?

OM – Penso que muita gente ficará bastante sensibilizada com o trabalho feito pelo William. O livro é majestoso, verdadeiramente espetacular. Ele foi mais do que um investigador; realizou um trabalho profissional, profundo e com enorme dedicação. É a obra de um grande amigo que se empenhou intensamente na elaboração desta biografia.

VA – O William falou há pouco da sua infância, vivida num contexto de dificuldades. Como é que esse período influenciou a pessoa que viria a tornar-se?

OM – Como contei ao William, e como ele descreve no livro, tive uma infância cheia de dificuldades, a vários níveis, porque vivi também um período difícil para o país. A minha família era toda do interior – o meu pai de Santa Catarina e a minha mãe dos Picos –, mas nasci na Praia, em 1935, porque o meu pai trabalhava aqui e os meus pais tinham vindo do interior para a cidade. Fizemos toda a nossa vida inicial aqui, mas, entretanto, o país atravessou anos muito duros – como sabe, vivemos as fomes de 1943 e 1947. O meu pai, que trabalhava por conta própria, enfrentou muitas dificuldades e isso afetou diretamente os meus estudos. Fiz o ensino primário na Escola Central, no Platô, e depois o exame de admissão. Em seguida fui para São Vicente estudar, porque não havia liceu na Praia. Fiz lá o primeiro ano, mas em 1947 – o tal ano fatídico para Cabo Verde – os meus pais deixaram de ter condições para eu continuar. Tinha boas notas, mas tive de parar. Regressei à Praia, vivi com os meus pais e comecei a procurar trabalho. Três anos depois consegui emprego, primeiro em empresas privadas e depois na Câmara Municipal. Aos 15 anos já trabalhava na Câmara e, a partir daí, comecei a organizar-me para retomar os estudos: fiz o ciclo preparatório, obtendo excelentes notas, e no ano seguinte fiz o Curso Geral dos Liceus, estudando numa escola privada que funcionava na Praia. Tive como professores Anastácio Filinto, pai do nosso Filintinho, Alfredo Veiga, pai do nosso Carlos Veiga, e o senhor Barbosa Amado – foram eles os meus explicadores. Consegui também boas notas no Curso Geral dos Liceus, tanto em Letras como em Ciências. A partir daí já podia concorrer aos concursos promovidos pela Câmara Municipal e obter um emprego que me permitisse melhores condições de vida.

VA – Esta vivência inicial, marcada por tantas dificuldades, foi determinante para o espírito solidário que caracteriza a sua vida?

OM – Absolutamente! Na rua onde nasci e cresci – a Rua Doutor Loreno, naquele beco que vai dar ao Hospital da Praia – tinha vizinhos muito amigos, nomeadamente a família do senhor Jorge Santos, que era protestante e que me influenciou bastante. Passei a colaborar e a participar na Escola Dominical. Na Igreja do Nazareno tive contacto com várias pessoas e estudava a Bíblia, especialmente os Evangelhos, que tiveram uma grande influência na minha vida. Nessa altura eu já não bebia bebidas alcoólicas, não fumava… Era um conjunto de comportamentos que moldou a minha vivência. Por isso digo que foi um período que, por um lado, foi difícil, mas, por outro, permitiu-me ganhar compreensão da vida e das suas dificuldades, e criar condições para as superar e seguir o meu caminho.

VA – O William destacou o seu papel no fortalecimento das instituições desportivas, num período que coincidiu com o pós-independência. Como foi trabalhar num contexto de tantas carências, num país que chegou a ser considerado inviável?

OM – Talvez recuasse um pouco no tempo. A minha participação no desporto começou antes da independência. Gostava – e ainda gosto – muito de desporto. Desde criança tinha a tendência de juntar amigos para criarmos grupos. Formámos um grupo infantil chamado Benfiquinha, precisamente porque, na época, praticamente toda a gente na Praia era benfiquista. O Benfica tinha jogadores africanos que nos inspiravam muito, como Eusébio, Coluna e outros. Jogávamos futebol na Ponta Belém, na Rua Sá da Bandeira, no Monte Agarro, na Praia Negra… praticávamos muita atividade desportiva e, mais tarde, entrámos em clubes federados, nomeadamente o Sporting Clube da Praia, onde fui jogador, treinador e presidente. Mais tarde tive de sair para a Guiné-Bissau, nos anos 60, onde joguei durante dois anos no Ténis Clube. Quando regressei, voltei ao Sporting Clube da Praia. Depois da independência, continuei ativo no desporto: fui presidente da Associação Regional de Futebol e depois da Federação Cabo-Verdiana de Futebol, desenvolvendo várias atividades, como campeonatos regionais e nacionais e competições internacionais de juniores, da CPLP e da Macaronésia. Participei numa reunião da CAF, com o Presidente da FIFA, no Senegal, onde foram tomadas decisões fundamentais que permitiram a participação de Cabo Verde nas competições africanas, tanto de clubes como de seleções. O Sporting Clube da Praia, o Mindelense, os Travadores, a Académica participara várias vezes e isso foi muito motivador, porque era a primeira vez que clubes cabo-verdianos competiam em África. O que vemos hoje é, no fundo, fruto desse trabalho iniciado lá atrás.

VA – Como se sente ao ver as nossas seleções chegarem finalmente às competições mundiais e regionais?

OM – Esse trabalho envolveu muitas pessoas, porque vários presidentes trabalharam antes e depois da independência. Houve continuidade. O atual presidente da Federação Cabo-Verdiana de Futebol, Mário Semedo, iniciou muito cedo a sua caminhada e deu uma colaboração extraordinária. Realizou um trabalho gigantesco na criação de infraestruturas para o desporto. No meu tempo havia apenas dois campos oficiais pelados – o Estádio da Várzea, na Praia, e o Estádio da Fontinha, em São Vicente. Ele fez um trabalho colossal e passámos a ter mais de 30 estádios em todos os concelhos do país, todos relvados, sem mencionar os equipamentos. Houve uma evolução enorme entre o que existia no passado e o que existe hoje. Por isso, a qualificação da nossa seleção masculina sénior para o Campeonato do Mundo é algo extraordinário. Sempre se desejou, mas nunca tinha sido alcançado.

VA – O senhor Orlando é também um homem do olimpismo e da solidariedade, áreas que partilham valores como cidadania, disciplina e espírito comunitário. Quando olha para a nossa sociedade, que valores sente que estão a faltar?

OM – Eu não diria que estamos a falhar – aquilo que alcançámos desde a independência mostra que percorremos um longo caminho. Mas há uma grande necessidade de insistir nos valores do olimpismo, porque vemos muitas crianças e jovens com comportamentos desviantes. É fundamental que, para além do ensino académico, se dê uma atenção especial aos valores olímpicos – respeito, amizade, solidariedade, excelência, fair play, jogo limpo. Estes valores devem ser transmitidos com muita insistência nas escolas e nas comunidades, porque são essenciais para a formação integral dos jovens e para a sua atuação como adultos no futuro.

VA – Em Cabo Verde, quem está no associativismo trabalha, na maioria das vezes, de forma voluntária e gratuita, e muitas vezes pensa em desistir quando as dificuldades se acumulam. Que mensagem deixa a essas pessoas?

OM – O associativismo é fundamental em todas as áreas, porque o trabalho coletivo é extremamente importante. Todos nós, onde quer que estejamos, precisamos permanentemente de trabalho de equipa, porque ninguém faz nada sozinho. Por isso, é essencial que as pessoas tenham sempre presente a importância da solidariedade, do associativismo, do companheirismo e do trabalho em equipa para o desenvolvimento de qualquer atividade. Muitas vezes vemos grupos – desportivos ou sociais – desmoronarem-se porque deixam o trabalho para uma só pessoa. Mas ninguém consegue fazer tudo sozinho; só se consegue fazer alguma coisa trabalhando em equipa, de forma solidária e conjunta. É isto que digo a todas as pessoas que lideram equipas ou associações: pensem sempre no trabalho coletivo, porque só com solidariedade se consegue desenvolver qualquer tipo de atividade. Onde quer que estejamos, se não houver união de esforços, não conseguiremos levar nenhuma iniciativa a bom porto.

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