Terça-feira, 02 Setembro 2025

Grande Entrevista

“O cinema cabo-verdiano tem histórias para contar e vozes para fazer ouvir, só precisamos acreditar e investir”, afirmou José Ferminino, realizador do filme “Caminho Longe”.

“O cinema cabo-verdiano tem histórias para contar e vozes para fazer ouvir, só precisamos acreditar e investir”- José Firmino

O filme “Caminho Longe”, do realizador José Firmino, tem vindo a conquistar o reconhecimento internacional pela forma sensível com que retrata uma história de amor, a emigração, bem como a riqueza da cultura cabo-verdiana. Com exibições bem-sucedidas em Itália e Holanda, a obra destaca-se não apenas como uma produção cinematográfica, mas também como um autêntico documento patrimonial que celebra as tradições e a identidade de São Nicolau.

Em entrevista ao Voz do Archipelago, José Firmino sublinha que, mais do que um filme, “Caminho Longe” é um convite à reflexão sobre a identidade, a coragem e a resiliência. O realizador explica  o impacto da obra e o processo de criação desta produção cinematográfica. José Firmino partilha igualmente os desafios enfrentados com recursos limitados e fala sobre a inspiração subjacente à história e a importância conferir visibilidade às narrativas da nossa terra. 

Voz do Arquipélago: como nasceu a ideia  do filme “Caminho Longe” e o que o motivou a envolver-se nesta produção?

José Firmino: O projeto do filme “Caminho Longe” nasceu de um concurso nacional do Ministério da Cultura. Éramos 35 concorrentes e foram selecionados 22. Fui selecionado entre os 22.  Assim, acabei por escrever o filme sobre a emigração para São Tomé e para a América. Quando fui selecionado, a princípio fiquei eufórico, mas, no dia seguinte, fiquei a refletir sobre a responsabilidade que tinha em realizar esse filme. Não sou cineasta, mas, mesmo conhecendo as dificuldades que existiam para começar, encarei o desafio. Comecei a escrever a história do filme, o guião e também a planificação do cenário onde a obra seria filmada. A motivação para este filme provém igualmente da minha experiência anterior em produzir reportagens de carnaval e registar festas culturais; sempre me vejo a realizar trabalhos audiovisuais. Daí que, quando surgiu este concurso, resolvi participar.

VA: O que distingue “Caminho Longe” de outros projetos cinematográficos cabo-verdianos ou da diáspora?

José Firmino: O nosso filme tem uma particularidade muito especial: o nosso cenário é o maior protagonista, São Nicolau é o nosso património. Realizámos toda a obra na Vila da Ribeira Brava, na localidade da Preguiça. Integrámos o património no cenário do nosso filme: igrejas, praças, ruas, casas antigas, a escola de música dos anos 50 da Ribeira Brava. A Preguiça tem toda a história da chegada do navegador e explorador português Pedro Álvares Cabral e também do nascimento da grande escritora portuguesa Antónia Pusich. O filme retrata igualmente o contexto da morna sodade. O nosso ator principal é Chiquinho, numa homenagem ao romance “Chiquinho”, e a nossa atriz, Maria Isabel, é uma jovem que viveu nos Estados Unidos e que acabou por casar com o protagonista Chiquinho na igreja de Nossa Senhora do Rosário, catedral da Vila da Ribeira Brava. Maria Isabel ajudou muitas crianças na época em que o país foi fustigado pela fome.

VA: Quais foram os maiores desafios que enfrentou durante a produção do filme?

José Firmino: Os desafios foram enormes, porque eu não tinha muita experiência no campo do cinema, a não ser uma curta-metragem de 12 minutos que eu havia realizado anteriormente. Foi um grande sacrifício, mas também uma grande aprendizagem. Valeu a pena. Não foi muito fácil porque nunca fui cineasta; também os atores não tinham formação na área, nunca tiveram experiência de teatro nem de cinema. Fizemos o nosso trabalho apenas com a câmara; praticamente nunca tivemos tripé, nunca tivemos técnico de iluminação nem técnico de som. Foi uma grande ousadia da nossa parte, e só agradeço a Deus, porque o filme acabou por ser um grande sucesso. Todos quantos o viram gostaram e entenderam a mensagem.

VA: O filme aborda temas como identidade, coragem e resiliência. Como é que estes valores são retratados na história?

José Firmino:

O nosso filme aborda a imigração para São Tomé e a imigração para os Estados Unidos. Chiquinho é um jovem que vivia em Ribeira Brava, numa casa de pedra, com um quintal de árvores em frente. Maria Isabel é uma jovem que vivia nos Estados Unidos, era enfermeira e trabalhava numa loja de joias; veio casar com Chiquinho em São Nicolau. Quando Chiquinho parte para São Tomé, mostramos a forma como um imigrante sai de casa: sai com uma bolsa na mão, com mala, maleta e mochila. Todas as pessoas saem com pertences de casa, e isso comove qualquer imigrante. As pessoas na diáspora identificam-se com o filme, com a sua história. O filme tem também uma parte sobre a violência baseada no género, no sentido da aceitação do “não” no relacionamento e no casamento, para que as pessoas também compreendam a importância desta questão.

VA: Qual tem sido o feedback das audiências, tanto em Cabo Verde como no estrangeiro?

José Firmino: O nosso filme tem sido bem aceite. Fizemos 30 sessões, tudo sob a minha responsabilidade. Em São Nicolau, apresentámos 20 vezes, em várias localidades. Em São Vicente, dois dias depois, e na ilha de Santiago. Levámo-lo para a Itália e apresentámo-lo duas vezes. Foi um delírio, foi espetacular. As pessoas emocionaram-se. Na Holanda também foi espetacular. Tive o privilégio de apresentar “Caminho Longe” numa Casa de Cinema onde se apresentam filmes internacionais. Acabei por pagar um valor elevado, mas foi um grande prémio para o nosso filme. Essa foi uma grande satisfação, um grande incentivo para o futuro. Possivelmente é o filme mais visto em Cabo Verde de 2024 e 2025. O nosso filme tem tido grande adesão. Fizemos sessões exclusivas só para o Liceu da Ribeira Brava – 10 sessões por dia – no sentido de avaliar o valor patrimonial do filme.

VA: Acredita que o filme pode ajudar a fortalecer a identidade cultural cabo-verdiana além-fronteiras?

José Firmino: sim, completamente. O nosso filme traz um grande valor patrimonial de Ribeira Brava. Ribeira Brava foi muito importante desde o seminário-liceu, assim como a Preguiça, com toda a sua história. Mostramos tradições como os rituais de quando um jovem queria casar; mostramos a farinha de pau, os canhões que eram usados para defender a ilha da pirataria antigamente. Destacamos também a igreja, a catedral que foi sede do Bispado de Cabo Verde e Guiné-Bissau durante quase 200 anos.

VA: “Caminho Longe” tem emocionado audiências internacionais. Pode partilhar algumas experiências marcantes em festivais ou exibições fora de Cabo Verde?

José Firmino: A experiência na Itália foi marcante. As pessoas emocionaram-se muito. Na Holanda, na Casa de Cinema Internacional, foi também uma experiência única. Conseguimos fazer com que o nosso filme chegasse a uma casa onde se apresentam filmes internacionais. O feedback foi muito positivo; recebemos muito carinho e muitas palavras de incentivo. Tenho tido convites para a Argentina, Portugal e outros países. Estou a pensar em levar o nosso filme a outros países ou ilhas.

VA: Há planos para levar o filme a mais festivais internacionais ou plataformas de streaming?

José Firmino: Pensamos em fazer outra digressão pela Europa nos próximos meses, para tentar levar a Portugal e outros países este trabalho. Depois também levá-lo para outras plataformas e realizar o segundo filme. Infelizmente, nunca tivemos apoio no sentido de levar o nosso filme para outras ilhas de Cabo Verde. Por vezes, os custos de estadia, de sala, tudo isso, somos nós que temos de assumir.

VA: Que impacto espera que “Caminho Longe” tenha a médio e longo prazo no cinema cabo-verdiano?

José Firmino: Espero que seja um grande incentivo para o cinema, mas ainda está tudo parado. Há uma má distribuição de recursos culturais: demasiado investimento em música e festivais, enquanto cinema, teatro e literatura têm menos apoio. Estes recursos deveriam ser distribuídos por outras áreas que, por vezes, têm um papel fundamental. O cinema em Cabo Verde é algo que não traz votos, não traz benefícios para os políticos e empresas. Nós envolvemos quase 60 pessoas no nosso filme, mas nunca tivemos apoio institucional para o fazer circular.

VA: Depois deste projeto, há novas produções já em preparação?

José Firmino: Temos ideias para a sequência do nosso filme. É muito difícil fazer cinema em Cabo Verde. Por vezes, o responsável pelo cinema dá uma palavra que incentiva, mas no apoio ao filme é zero. Apesar disso, o nosso filme, para mim, é uma grande surpresa. Toda a adesão ao filme, saber que as pessoas se identificam com o enredo, é a maior recompensa. Sinto muito orgulho deste trabalho, visto que este filme traz um grande valor patrimonial da Ribeira Brava e de Cabo Verde. O cinema cabo-verdiano tem histórias para contar e vozes para fazer ouvir; só precisamos de acreditar e investir. A evolução do sector dependerá da aposta na formação, em equipamentos e no envolvimento do Estado, das autarquias e da sociedade civil. Filmes culturais e históricos podem servir as escolas e, ao mesmo tempo, projetar a identidade cabo-verdiana no mundo, fazendo do cinema um verdadeiro embaixador de Cabo Verde.

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