No seu mais recente desafio criativo, Eurídice Monteiro — que assina como Eurydice no universo literário — estreia-se no teatro em versos com “Pai di fidju ku mudjeris di txunbu | Pai di fidju e as mulheres de aço”, uma obra que cruza oralidade cabo-verdiana, identidade e memória. Investigadora, professora universitária e autora multifacetada, a escritora reflete nesta conversa com Voz do Archipelago sobre a força da palavra, a importância do crioulo, os caminhos que tem aberto na literatura e os rumos que ainda pretende explorar.
Por: Teresa Sofia Fortes
Voz do Archipelago (VA) – “Pai di fidju ku mudjeris di txunbu | Pai di fidju e as mulheres de aço”. Este é o seu primeiro trabalho em teatro em versos. O que a levou a experimentar este género?
Eurídice Monteiro (EM) – O teatro sempre me fascinou pelo encontro entre corpo, voz e ritmo. Escrever em versos permitiu-me aceder a uma musicalidade ancestral, mais próxima da oralidade cabo-verdiana. Senti que esta história exigia palco, ritmo e corpo e era preciso que fosse escutada tanto quanto lida.
VA – A peça é bilíngue, em crioulo e português. Qual a importância de usar o crioulo na sua escrita?
EM – O crioulo é a minha língua afetiva e fundacional. É uma língua de resistência, memória e identidade. Usá-la é um gesto humano e estético. É afirmar que a nossa fala, com toda a sua complexidade, merece existir plenamente na literatura e no mundo.
VA – Que mensagens ou reflexões pretende transmitir com esta obra?
EM – A peça convida a pensar sobre força, resiliência e identidade. Interessa-me sobretudo explorar as formas silenciosas de poder, o que se transmite entre gerações, o que nos molda, o que nos sustém. É uma obra sobre fragilidade e coragem, sobre herança e reinvenção.
VA – Sente que esta peça marca uma nova fase da sua carreira literária?
EM – Sem dúvida. Cada obra abre uma porta nova. Este trabalho marca uma fase mais performativa e experimental, onde exploro a palavra no espaço e no corpo. É um caminho que pretendo aprofundar.
VA – Já publicou ensaios académicos, romances, crónicas, livros infantojuvenis e agora teatro. Como decide o género literário de cada obra?
EM – A obra escolhe o seu próprio corpo. Há histórias que pedem a respiração longa do romance; outras exigem a brevidade cortante da crónica ou a oralidade vibrante do teatro. O género é apenas o território onde a narrativa se sente mais livre e verdadeira.
VA – Dos livros que já publicou, há algum que considera particularmente marcante na sua carreira? Porquê?
EM – Cada livro marca-me de forma distinta, mas há aqueles que funcionam como marcos fundadores. Marcantes são os que me desafiaram a reinventar a minha voz ou a aprofundar territórios temáticos que ainda não dominava. São esses que me obrigaram a crescer, quer do ponto de vista literário, quer humanamente.
VA – Como nasceu a sua paixão pela escrita?
EM – Desde cedo percebi que as palavras têm o poder de ampliar o mundo, tanto o meu, como o dos outros. Cresci a observar histórias, a escutar silêncios e a transformar experiências em linguagem. A escrita foi, e continua a ser, um dos modos de compreender e intervir no real.
VA – A sua carreira académica e literária tem andado lado a lado. Como concilia estes dois mundos?
EM – Para mim, não são mundos distintos; são vasos comunicantes. A academia oferece rigor, método e profundidade analítica. A literatura proporciona liberdade, imaginação e ousadia. O equilíbrio nasce do diálogo permanente entre ambos.
VA – Entre os seus artigos científicos, livros académicos e obras literárias existe um fio condutor?
EM – Sim. O meu fio condutor é a inquietação: social, histórica, identitária e humana. Interessa-me explorar o que nos fecunda e o que nos move. Seja em ensaios ou ficção, escrevo sempre com a convicção de que a palavra pode ser ferramenta de consciência e transformação.
VA – Os livros infantojuvenis têm um público muito específico. Que desafios sente ao escrever para crianças e jovens?
EM – Escrever para os mais jovens requer honestidade, clareza e imaginação sem concessões. O desafio maior é não subestimar a inteligência sensível das crianças, nem simplificar em excesso. É necessário falar-lhes com beleza, com verdade e com respeito pela sua capacidade de questionar o mundo.
VA – Tem sido convidada para programas académicos e literários em África, Europa, EUA e América Latina. Que experiências destacaria dessas viagens?
EM – Essas viagens ampliam a minha visão do mundo e permitem-me perceber como a produção científica e literária cabo-verdiana dialoga com outras geografias. O que mais destaco é a troca: ouvir outras experiências, partilhar perspetivas, perceber o que nos aproxima e o que nos singulariza.
VA – Como vê a literatura cabo-verdiana no panorama internacional? Há espaço para crescimento e reconhecimento?
EM – A literatura cabo-verdiana vive um momento de afirmação. Temos vozes maduras, inovadoras e profundamente conectadas às questões contemporâneas. Há espaço para crescer, sim, e esse crescimento passa pela tradução, pela circulação e pela construção de pontes entre ilhas, continentes e imaginários.
VA – A atribuição de prémios nacionais e internacionais teve algum impacto na forma como encara a sua escrita?
EM – Os prémios não determinam a minha escrita, mas validam caminhos. Funcionam como reconhecimento de que a palavra chegou onde deveria chegar. Reforçam a responsabilidade, não o ego. Escrever continua a ser um gesto de escuta e serviço ao público.
VA – De onde vêm as suas ideias para escrever? Existe alguma rotina ou método de trabalho?
EM – Estudo muito e observo atentamente. As ideias nascem do real, do imaginário, da memória, das ruas, das conversas e, sobretudo, dos silêncios. Trabalho com disciplina, mas não me deixo aprisionar por rotinas rígidas. Escrevo quando a voz interna convoca e retorno ao texto com rigor, sempre. A criação é liberdade; a revisão, o método que lhe dá forma e consistência.
VA – Que autores ou obras influenciaram o seu percurso literário?
EM – Sou influenciada por autores cabo-verdianos que abriram caminhos, mas também por vozes africanas, latino-americanas e da literatura universal. Interesso-me sobretudo por autores que experimentam, que arriscam linguagem e estrutura, que escrevem com a coragem da autenticidade.
VA – Como encara a relação entre literatura e investigação académica na sua vida profissional?
EM – Vejo-as como dimensões complementares. A investigação dá-me ferramentas para compreender estruturas sociais, políticas e culturais; a literatura permite-me problematizá-las através da sensibilidade e da imaginação. A ponte entre ambas enriquece o meu olhar e amplia a minha intervenção no social.
VA – Que projetos literários ou académicos tem em vista para o futuro?
EM – Tenho vários projetos em desenvolvimento. Quero aprofundar, de forma ainda mais consciente, a oralidade, a identidade e o corpo feminino nas literaturas africanas. Paralelamente, preparo novas obras que atravessam diferentes géneros, guiada pela curiosidade intelectual e pelo compromisso de inovar. O meu próximo livro – cuja investigação já está em curso – será um romance de ficção histórica, inspirado num acontecimento sociopolítico ocorrido no interior da ilha de Santiago e que, a meu ver, merece uma atenção renovada. Santiago guarda episódios decisivos da nossa memória coletiva, muitos deles ainda à espera de serem narrados com rigor e sensibilidade. Quero contribuir para que essa história venha à luz e encontre o lugar que merece na literatura e na consciência social cabo-verdiana.
VA – Que mensagem gostaria de deixar a quem acompanha a sua obra e aos jovens que desejam seguir o caminho da escrita?
EM – Escrever é, acima de tudo, um ato de coragem e de vulnerabilidade. Que nunca lhes faltem disciplina, curiosidade e ousadia. Que leiam profundamente, escutem atentamente o mundo e confiem na singularidade da sua voz. E, acima de tudo, que não desistam, porque a escrita é também uma poderosa forma de resistência.