Descendentes de uma família cabo-verdiana emigrada para os Estados Unidos da América desde o fim do século XIX, Julius e Vanessa Britto carregam com orgulho uma herança marcada pelo compromisso com a luta pela independência de Cabo Verde. Nesta entrevista, os dois irmãos falam sobre as raízes familiares, a contribuição dos seus antepassados para a construção de um país livre e o significado de representar a sua família e a diáspora cabo-verdiana na cerimónia oficial de celebração do 50º aniversário da independência nacional.
Por: Teresa Sofia Fortes
Voz do Archipelago: Julius, vai participar na cerimónia oficial de celebração do 50º aniversário da independência de Cabo Verde, representando sua família e a Diáspora Cabo-Verdiana nos Estados Unidos. O que isso significa para si?
Julius Britto (JB): É o fechar de um ciclo. Em 1975, eu tinha 25 anos (agora tenho 75) e fui convidado para testemunhar a cerimónia de declaração da independência de Cabo Verde. Eu e David Silver, estava trabalhando com o PAIGC, preparando a missão nas Nações Unidas, saímos de Boston com destino à ilha do Sal, e eu fui envolvido pelo Ray Almeida, que trabalhava no Comitê Americano para Cabo Verde. Antes, tínhamos nos reunido para enviarmos arroz, materiais escolas e muitos outros itens (cerca de 40 toneladas) como presente. Eu queria ir conhecê-los, junto com o Ray e o David, o Tony Ramos, o Michael Frenchman e Joe Alves. Quando chegamos em Cabo Verde, a primeira pessoa a quem o David me apresentou foi Silvino da Luz, foi um momento glorioso.
Voz do Archipelago: Qual foi a sensação ao pisar na terra dos seus antepassados?
JB: Fui tratado como realeza. Costumo contar esta história: quando chegámos na ilha do Sal, ficámos à espera do avião que nos levaria para Praia. Esperámos toda a noite e até a manhã seguinte. Então, o David, que sabia falar crioulo melhor do que eu, perguntou por que ainda não estávamos a caminho da cidade da Praia? E alguém lhe disse que havia muitas pessoas chegando da Holanda e que o avião iria levá-las para São Vicente. Mas disseram-nos que um outro avião nos levaria para Praia e entrámos nesse avião sem saber que Aristides Pereira, vindo de Moçambique ou Angola, estava lá dentro, acompanhado por Luís Cabral e vários jovens. Quando chegámos na Praia, elementos do serviço de segurança disseram a mim e ao David que seríamos os primeiros a sair do avião. Quando fizemos isso, vários jornalistas do mundo inteiro que estavam na Praia, começaram a fotografar-nos como se fôssemos pessoas importantes, mas éramos apenas dois jovens da América, que estavam apreciando estar na terra dos seus antepassados. Dissemos então aos fotógrafos: “vocês entenderam errado, Aristides Pereira está ainda dentro do avião, é a ele que têm que fotografar e com ele que têm que falar”. E foi assim a nossa chegada em Cabo Verde. Depois disso, foi uma beleza sem pausa, nós estávamos tão cheios de emoção, porque Cabo Verde já era independente, isso tinha acontecido três ou quatro dias antes, e nós vimos o exército português sair, através do aeroporto. Juntamo-nos aos Combatentes pela Liberdade da Pátria – Lionel Miranda, Manuel Rodrigues, entre outros – ficamos com eles no Instituto de Solidariedade, e foi um prazer.
Voz do Archipelago: Quantas vezes veio para Cabo Verde após essa primeira viagem?
JB: Já estive em Cabo Verde quatro vezes, com a nossa chegada no dia 4 de julho, será a minha quinta vez.
Voz do Archipelago: O que pensa sobre o que vê, após 50 anos de independência?
JB: Eu tenho visto progresso, mas o mais importante foi a pergunta que me fizeram, em 1975, enquanto conversava com Combatentes da Liberdade da Pátria, homens e mulheres que colocaram sua vida em risco para Cabo Verde conseguir a independência: o que vai fazer por Cabo Verde, agora que estamos independentes, quando voltar para os Estados Unidos da América, para expressar a sua gratidão? Foi uma pergunta muito, muito pesada e um pouco incómoda para um homem de 25 anos de idade, e que não sabia como responder.
Voz do Archipelago: E o que fez quando regressou aos EUA?
JB: Quando voltei para casa, encontrei o projeto do navio Ernestina e eu fiz disso o meu objetivo, porque eu sabia que não estava ligado a sentimentos negativos, não era político, era apenas uma coisa muito positiva, e representava muito do que a minha família tinha vivido ao viajar de Cabo Verde para os EUA. E trabalhei para fazer de Ernestina um instrumento que permitiria que, em todos os lugares do mundo, se conhecesse Cabo Verde, e foi, de fato, um grande embaixador do país.
Voz do Archipelago: O que espera ao voltar pela vez a Cabo Verde?
JB: Espero sentir muito orgulho, muita gratidão e muita apreciação pelas lutas que muitos cabo-verdianos passaram para que Cabo Verde se tornasse independente.
Voz do Archipelago: Vanessa, o que significa para si ver o seu irmão representando sua família na cerimónia oficial de celebração dos 50 anos da independência de Cabo Verde?
Vanessa Britto (VB): Significa muito para mim. Sinto-me honrada por ele, por seu compromisso com Cabo Verde e pela paixão que transmitiu a todos nós, seus irmãos. Julius e eu temos 9 anos de diferença, eu sou a codê. A minha versão do que o Julius descreveu é a de uma adolescente que entendeu que havia uma missão muito importante, que era a luta pela independência do país dos nossos avós e bisavós. Quando o Julius viajou pela primeira vez para Cape Verde eu tinha 16 anos. Não tínhamos todas as redes sociais e conexões on line para acompanhar e entender todo o percurso do Julius, mas sentíamo-nos animados pelo que estava acontecendo. Quando nós vimos no New York Times a reportagem sobre dois jovens americanos que expressavam a sua alegria e o seu orgulho por estar naquele momento importante, a alegria tomou conta de nós, primeiro porque chegaram em segurança e, segundo, porque tomavam parte nesse momento simbólico na história de Cabo Verde, e até hoje mantemos a conexão com a família em Cabo Verde.
Voz do Archipelago: Família que tem origem Rubon Manel (Ribeirão Manuel, no concelho de Santa Catarina na ilha de Santiago)?
Sim, o nosso bisavô, Bernardino Horta Varela, que era originário de Rubon Manel, emigrou para os EUA em 1875, cremos nós, num navio baleeiro, deixando em Cabo Verde, a minha bisavó e duas filhas, uma com um ano e outra com dois anos, e não deu notícias por 17 anos e a família pensou que ele tinha se perdido no mar. O que aconteceu foi que ele, eventualmente após ter navegado pelo mundo, chegou a Massachusetts, onde, depois de desembarcar, comprou uma grande parcela de terra, 300 hectares. Ainda temos uma porção dessa propriedade e ainda vivemos lá, todos os meus irmãos com as suas famílias, muitos dos quais viajarão connosco para Cabo Verde. Meu bisavô decidiu que voltaria para Cabo Verde para ir buscar as suas filhas e a sua esposa. Quando voltou para Rubon Manel, foi uma surpresa para a família, pois todos achavam que ele estava morto. A filha que deixara com um ano de idade, Ana, tinha 17 anos, e a filha que tinha dois anos quando ele partiu, Matilda, tinha 19 anos. Foram primeiro para Brava, onde embarcaram num navio muito parecido com Ernestina, o que para nós explica, em parte, a conexão de Julius com este navio, pois é um símbolo de como a nossa família chegou nos EUA. Com outras 60 pessoas, viajaram com destino ao porto de Providence. Mas, após cerca de quatro semanas, foram apanhados por uma tempestade, que derrubou o mastro principal do navio e ficaram à deriva no mar. Tinham pouca água, poucos alimentos. A certa altura, o capitão abandonou o navio e meu bisavô, porque tinha trabalhado num navio baleeiro, conseguiu dirigir o navio de alguma forma, até que apareceu um navio transatlântico italiano que estava indo para Ellis Island, em Nova Iorque, e o capitão desse navio ao ver o pequeno navio, deu-lhes água e comida e os dirigiu para os EUA, estavam nessa altura a cerca de duas semanas do destino. Foi assim que a nossa família chegou aos EUA, e sabemos que isso é verdade porque pesquisamos e encontramos esta história escrita no New York Times, por volta de 1902.
Voz do Archipelago: Apesar de já terem passado 123 anos, a vossa família mantem a conexão com a Cabo Verde e é por isso que estão outra vez no país, trazendo agora as gerações mais jovens?
VB: Julius, eu e todos os nossos irmãos já estivemos em Cabo Verde, várias vezes. Agora é hora de garantirmos que as outras gerações continuarão esta conexão. E nós também sentimos que é também uma homenagem ao Julius, por ter viajado ainda jovem para Cabo Verde, tornando-se na primeira pessoa da nossa família a voltar ao país. E nesta mais recente viagem, quatro gerações irão estar em Cabo Verde.
Voz do Archipelago: Julius, o que este marco – 50 anos da independência de Cape Verde – significa para si e para a sua família, considerando que, por ocasião da declaração da independência, alguns países consideravam o país como inviável?
JB: Nós experimentamos isso nos Estados Unidos da América. Havia fações que não achavam que o PAICG, ou quem quer que fosse que tomasse o controle do governo do país, seria capaz de tornar o país viável. Em 1976, quando se fez a celebração da independência de Cabo Verde em Massachusetts, o senador africano-americano Ed Brooks, republicano, que iria receber o presidente Ford para esse evento, reuniu-se antes comigo, Ray Almeida e mais outros cabo-verdianos, pois queria saber mais sobre Cabo Verde e como seria o novo governo no contexto global. Alguns responderam que devíamos ir lá ver, mas eu e Ray, que tínhamos estado com os Combatentes da Liberdade da Pátria, dissemos que esses indivíduos tinham colocado a sua vida em risco pela independência de Cabo Verde e, por isso, tinham o direito de governar o país e o senador Brooks concordou e disse que seria essa a mensagem que levaria ao Presidente Ford: Cabo Verde era uma república democrática e tinha o direito de fazer o seu governo. Foi marcante, senti um imenso orgulho
VB: Julius, posso contar a história da nossa família com Amílcar Cabral?
JB: Sim!
VB: A luta pela independência foi uma parte importante da nossa comunidade, todos estavam envolvidos. Nossa mãe, que era uma mulher destemida, esteve muito envolvida na luta pela independência. Em 1973, quando a minha mãe ficou a saber que Amílcar Cabral iria falar na ONU, decidiu que ele deveria saber, primeiro, que, sendo ambos da mesma parte de Assomada e ambos Cabral (a nossa avó, Matilda, era uma Cabral), deveriam ter as mesmas raízes. E, uma vez que ele ia estar na ONU, queria ir conhecê-lo e dizer-lhe que a comunidade estava solidária com a luta pela independência. Então, ela escreveu uma carta a Amílcar Cabral, se apresentando e falando de nós, como família, da sua paixão pela causa da independência de Cabo Verde e que queria viajar até Nova Iorque para conhecê-lo. Ela enviou a carta, em janeiro, após o Ano Novo, mesmo não sabendo exatamente onde ele estava (estaria algures em Conacri). Ela enviou a carta e três semanas depois o mundo ouviu que Amílcar Cabral tinha sido assassinado. Ficámos todos destroçados ao receber essa notícia, para nós era uma grande tragédia! O Julius tinha estado em Cabo Verde, em 1975, os meus pais em 1984, mas a minha primeira vez foi em 1989. Nessa altura, a minha mãe quis conhecer a viúva de Amílcar Cabral (Ana Maria Cabral) e contactámos algumas pessoas que nos disseram onde ela morava.
Voz do Archipelago: Conseguiram?
Chegando lá, na Prainha, a minha mãe, Lina Britto, se apresentou a Ana Maria Cabral e, simpaticamente, ela nos convidou a entrar e falámos com ela por algumas horas e, quando a minha mãe lhe disse que escrevera uma carta para a Amílcar Cabral e que ele provavelmente nunca a recebeu, Ana Maria pediu-nos que esperássemos um momento. Na altura, ela estava organizando os materiais que seriam da Fundação Amílcar Cabral. Quando voltou para junto de nós, disse à minha mãe: “Ele respondeu-lhe, aqui está a carta”!! Nós temos uma cópia dessa carta, escrita à mão por Amílcar Cabral, que diz algo parecido com: “Senhora Britto, muito obrigado por estar connosco na luta. Eu também acredito que estamos relacionados e vou dizer ao meu colega que vai para a ONU para ir se encontrar consigo, e espero vir a conhecê-la um dia, pessoalmente”. E está assinada ”No Pintcha, Amílcar”!
Nota da Redação
Esta é a primeira parte de uma entrevista com os irmãos Julius e Vanessa Britto, disponível em texto e também em áudio.
A segunda parte será publicada em breve.
Ouça a Parte I aqui:
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