Referência incontornável da luta por justiça social, equidade racial e de género no Brasil e no mundo, a deputada federal Benedita da Silva é uma das oradoras do Primeiro Fórum Internacional Mulher e os Desafios do Desenvolvimento, que acontecerá no dia 30 deste mês, na cidade da Praia, co-promovido pelo Voz do Archipelago. Com uma trajetória marcada pelo pioneirismo — foi a primeira mulher negra a assumir um assento no Senado brasileiro e a primeira governadora do Estado do Rio de Janeiro — Benedita da Silva representa, com coragem e consistência, a voz das mulheres que resistem, transformam e constroem políticas públicas a partir das suas vivências e saberes. Nesta entrevista ao nosso diário, Benedita reflete sobre os principais desafios para a participação plena das mulheres nos espaços de poder, aponta caminhos para uma política mais inclusiva e interseccional, e partilha a sua visão sobre a importância da formação e mobilização das lideranças femininas, especialmente aquelas que atuam nas bases das comunidades.
A sua trajetória política é referência para muitas mulheres na luta por voz e representação. Que estratégias considera essenciais para ampliar a participação efetiva das mulheres, especialmente as mais vulneráveis, nos espaços de decisão política?
Quando eu entrei na política, eu me senti sozinha. Eu era a primeira mulher negra naqueles espaços, uma mulher favelada. Quando fui eleita deputada constituinte, Brasília era um ambiente ainda mais hostil. Mas foi ali, junto das outras deputadas e das mulheres dos movimentos sociais, que vi o quanto a caminhada poderia ser mais leve. Enquanto os parlamentares homens não queriam que as mulheres opinassem sobre os grandes temas da nação, relegando nossa participação ao que consideravam ser “de mulher”, como os cuidados; nós vimos ali que, independentemente da nossa origem, da nossa cor partidária, da nossa fé, antes de mais nada éramos mulheres e éramos afetadas em nossa autonomia e relevância política de modo muito parecido, com violência política de género que não sabíamos ainda que tinha esse nome. No meu caso, ainda tinha a questão do racismo. Nos unimos e com isso conseguimos aprovar mais de três mil emendas ao texto constitucional, incluindo a igualdade entre homens e mulheres, a licença-maternidade e paternidade, a igualdade salarial, entre outras. Então eu penso que a primeira estratégia é ter consciência que não chegamos aos espaços sozinhas. Que antes de nós muitas lutaram para que tivéssemos o direito de votar e ser votadas e que estamos abrindo espaços para outras continuarem essa jornada e irem mais longe. E com isso entender que precisamos nos apoiar, porque só nós sabemos o quanto o mundo é duro com as mulheres. O protagonismo na cena política brasileira é masculino e branco e para uma mulher entrar na política, alguém tem que sair. E ninguém quer abrir mão do poder. Só vamos mudar a realidade partidária e política de sub-representação se estivermos dispostas a atuar juntas, abrindo as portas dos partidos políticos e cobrando para que respeitem a legislação e viabilizem a participação do grupo que representa a metade da população brasileira e ainda é responsável por parir a outra parte. Foi só por meio da justiça eleitoral que conseguimos aprovar as cotas para candidaturas femininas e, só em 2018, uma representação da Bancada Feminina da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, é que se conseguiu obrigar os partidos a investirem 30% de recursos e de tempo de rádio e TV nas candidaturas femininas. Com isso, a Bancada Feminina teve um aumento de 50% naquelas eleições. Em 2020, o o TSE- Tribunal Superior Eleitoral – determinou, a partir de uma consulta que eu formulei, que os recursos financeiros e da propaganda eleitoral gratuita também fossem divididos igualitariamente entre candidatos e candidatas negras e não negras. Essas consultas só tiveram êxito porque estávamos com o mandato que permitia que nossas vozes fossem ouvidas. Então mulheres, participem! Nada é dado para as mulheres, tudo precisa ser conquistado com muita luta e depois mais luta ainda para manter os direitos conquistados. Não será fácil, mas será extremamente importante para a democracia e para o país. Se organizem nos seus bairros, nas suas comunidades, nas suas igrejas, nos locais de estudo e de trabalho. Elejam as bandeiras que vão defender, escolham o partido que esteja alinhado com suas pautas e participem da vida partidária para que possam viabilizar suas candidaturas, serem eleitas e estarem nesse espaço tão importante, que define as regras da nossa vida em sociedade, que é a política.
Apesar dos avanços, a sub-representação feminina ainda é uma realidade em muitos parlamentos. Como avalia os mecanismos de cotas e que outras medidas poderiam acelerar a equidade de género na política?
Sabemos que os avanços, apesar de importantes, ainda não foram capazes de transformar a cultura partidária e termos mais representatividade no Parlamento, nas Assembleias e Câmaras Legislativas. A Lei de Cotas foi adotada para tentar corrigir essa distorção, mas elas não resolvem o problema sozinhas, pois os partidos são constituídos, em suas direções, de homens criados numa sociedade machista queenxerga a participação feminina como uma ameaça à participação e liderança masculinas. O aumento de mulheres eleitas é imprescindível para que sejam adotadas políticas que favoreçam a população feminina. Estudos mostram que a presença de mulheres em cargos eletivos resulta em maior atenção a temas como saúde, educação, igualdade de género e proteção social. Quanto mais eleitas, maior é a aprovação de leis relacionadas ao combate à violência doméstica e maior a destinação de recursos para as áreas sociais, beneficiando amplamente toda a sociedade. Quanto mais mulheres, de diversas raças e etnias, de diversos contextos sociais, mais diversa e democrática será a política pública. Mulheres negras, quando eleitas, tendem a priorizar questões relacionadas à justiça social, igualdade racial, políticas de saúde pública e direitos das mulheres, refletindo suas experiências e as demandas das comunidades que representam. Além disso, a ONU ressalta que a igualdade de género é essencial para o desenvolvimento sustentável. Quando as mulheres participam dos espaços de poder, há um fortalecimento das democracias e avanços em direitos humanos, além de uma distribuição mais justa de recursos. A ocupação de cargos por mulheres tem efeitos positivos diretos e indiretos na economia, aumentando a visibilidade e as oportunidades para outras mulheres e promovendo uma maior igualdade no mercado de trabalho. Sabemos que, apesar das Leis e das regras atuais do TSE – Tribunal Supremo Eleitoral, quanto às cotas, faltam o cumprimento e a fiscalização de sua aplicação pela própria Justiça Eleitoral. Falta também o compromisso com a pauta, pois os partidos não cumprem a regra e depois o Parlamento aprova mais uma amnistia. Falta o compromisso dos partidos com as mulheres, com a democracia e com o futuro do país. São poucos os partidos que estabelecem cotas internas e criam oportunidades para que as mulheres estejam na direção. O PT, Partido Trabalhista, por exemplo, é um dos poucos partidos que têm paridade e cota geracional e étnico-racial nas direções partidárias. Precisamos também alcançar a reserva de cadeiras, tornar efetivas a destinação das cotas e dos recursos financeiros como ações primordiais para garantir a equidade de direitos políticos pela qual lutamos, além de combater a violência política de género.
O empoderamento político das mulheres passa também pela formação e fortalecimento de lideranças nas comunidades. Que papel o Estado e os movimentos sociais devem desempenhar nesse processo de base?
A formação é essencial porque não basta que as mulheres cheguem aos espaços de poder e decisão, é preciso que elas tenham imbuído nas suas ações e prioridades, as demandas das mulheres que elas representam, que estão na base. No âmbito do Governo Federal, as mulheres sempre foram uma prioridade para o Governo Lula. No Ministério das Mulheres, temos a campanha “Mais mulheres no poder, mais democracia”, que busca conscientizar e sensibilizar a população brasileira sobre a realidade da violência política que atinge de forma permanente as mulheres, especialmente as mulheres negras, indígenas e LBTs. A campanha tem também uma cartilha, que visa ampliar e qualificar o debate sobre a importância da participação política das mulheres nos espaços de poder e decisão, em especial na política local. A publicação faz um resgate histórico da legislação eleitoral, traz dados sobre violência política de género, sobre a sub-representatividade das mulheres na política nacional e apresenta ações do governo federal para mudar este cenário. Além da participação política das mulheres estar na agenda do Governo Federal, atuamos como Legislativo, especialmente junto ao Judiciário, pela maior participação feminina e pelo combate à violência política de género, com a Lei de Combate à Violência Política contra a Mulher, campanha de combate à violência e pela participação política e disponibilizando materiais e cursos online de formação no portal da Escola Virtual da Cidadania, da Câmara dos Deputados. Já os movimentos sociais têm um papel importantíssimo, além de monitorar e exigir do Estado a implementação de políticas igualitárias, podem apresentar projetos na base, por meio de editais e subsídios, para projetos de formação política que fortaleça coletivos, grupos de mulheres, de líderes e redes comunitárias. Penso que enquanto ao Estado cabe colocar essa prioridade na agenda e atuar para acabar com as desigualdades, institucionalizar oportunidades e promover o fortalecimento das lideranças de mulheres, os movimentos sociais podem tanto manter a pressão e fiscalização junto às ações do Estado, como também atuar de maneira mais aproximada nas comunidades, porque estão mais perto das realidades locais e conseguem atuar na ponta. Juntos, podemos criar um grande movimento de conscientização para que as mulheres não participem desses espaços, mas sejam protagonistas, transformando as estruturas de poder e a nossa sociedade. Tem defendido a interseccionalidade como lente para a construção de políticas públicas mais justas.
Como garantir que as políticas de equidade contemplem, de forma real, as especificidades de raça, classe e território vividas pelas mulheres?
Considero que a interseccionalidade é uma ferramenta fundamental para a construção de políticas públicas mais justas, que combatam as desigualdades de forma estrutural e não apenas superficial, pois permite analisar como diferentes eixos de opressão se cruzam e produzem experiências únicas de exclusão ou de privilégio. É um método de ação política. Sabemos que as desigualdades entre homens e mulheres, entre pessoas negras e brancas, ainda são enormes e atravessam todas as áreas da nossa sociedade. Essas desigualdades limitam o acesso aos direitos, às oportunidades e ao desenvolvimento pleno de milhões de pessoas. E sabemos também que o orçamento público não é neutro, desse olhar de interseccionalidade. Por isso, nós parlamentares estamos trabalhando desde 2017 por um orçamento sensível a género e raça, que reconheça essas desigualdades e direcione os recursos para enfrentá-las. Em parceria com a Fundação Tide Setubal e a Rede Orçamento Mulher criámos o curso “Orçamento Sensível a Género e Raça” e junto da Escola Nacional de Administração Pública ajudamos a criar o curso “Género e Raça nos Planos Plurianuais Estaduais”. Entendemos que os gestores públicos precisam ser sensibilizados e receber formação sobre esse assunto, garantindo que compreendam como viés estruturais afetam a implementação de políticas e a mudança da sociedade. O meu apelo feito no ano passado, como Coordenadora da Bancada Feminina, foi para que as candidaturas registradas para as eleições municipais se comprometessem com propostas para a distribuição mais justa de recursos públicos e para o estabelecimento das prioridades da gestão local, incluindo os grupos que costumam ficar de fora deste planejamento. São nesses grupos mais afastados do centro do poder, onde as políticas públicas ganham vida e podem mudar a vida das pessoas e transformar nossa sociedade. A presença feminina nos espaços de poder e decisão é motor para políticas mais justas e eficazes, que beneficiam não só as mulheres, mas a sociedade como um todo.
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