Terça-feira, 23 Setembro 2025

Encostada à coluna

NHÔ PALAVRA E LIKE

Por: Maria Madalena de Jesus

Chegaram ao mesmo tempo ao café de sempre, no coração de Palmarejo. Só havia uma mesa livre, encostada à janela. Conheciam-se o suficiente para dispensar formalidades e, sem cerimónia, sentaram-se a partilhá-la.

Nhô Palavra, com os seus setenta e quatro anos bem vividos, trazia a marca de uma geração em que a palavra moldava destinos. Pela sua formação e prestígio, fora capaz de influenciar a opinião pública e de orientar o debate social e político. Escrevera artigos lidos com respeito, crónicas que incomodaram ministros, empresários e académicos, reflexões que despertaram consciências. A sua autoridade nascia da credibilidade, fosse ela institucional ou cultural.

À sua frente, em contraluz do ecrã, estava Like — figura de uma nova era, cuja autoridade vinha não da profundidade das ideias, mas da visibilidade digital e do número de seguidores.

Nhô Palavra sabia que Like vivia de exibições. Like sabia que Nhô Palavra vivia de editoriais, crónicas e reflexões que já quase ninguém lia.

— Então, meu rapaz, quantos gostos hoje? — perguntou Nhô Palavra, com ironia seca.

— Quinhentos numa foto de cappuccino. O truque é a espuma em forma de coração — respondeu Like, exibindo o telemóvel como troféu.

Nhõ Palavra riu, um riso amargo.

— No meu tempo, o coração era símbolo de coragem. Era defender o vizinho injustiçado, assinar uma petição, estar numa marcha mesmo sem saber se voltaríamos inteiros para casa. Era viver com peito aberto, sem pedir aplauso. Hoje é desenho de espuma. É essa a medida da tua geração: confundem sentir com consumir.

— As pessoas não querem pensar, querem distrair-se — disse o jovem, os olhos colados ao ecrã. — Já ninguém tem paciência para textos longos nem discursos sérios. Se não prende em segundos, se não gera engajamento, não existe.

Nhô Palavra inclinou-se para a frente, voz firme como sentença:
— Engajamento não é consciência. Não é porque cem mil clicam que cem mil pensam. Vocês transformaram política em frivolidade, solidariedade em hashtag, verdade em meme.

Like riu, mas a gargalhada soou nervosa.
— O mundo mudou, tio! Ninguém aguenta o peso de palavras. Leveza é agora a palavra de ordem.

— Não confundas leveza com vazio, rapaz — rebateu Nhô Palavra. — Leveza é poesia. Vazio é selfie. Vocês confundem o grito com a voz, o eco com a ideia. O que fazem não é comunicação, é ruído.

O silêncio caiu sobre a mesa, denso como chumbo. Pela primeira vez, Like guardou o telemóvel.

Nhô Palavra tomou fôlego e cravou as palavras como navalha:
— Não sou contra o futuro. Sou contra a mediocridade com que querem vesti-lo. Se tudo o que querem deixar é espuma e filtro, amanhã só restará o vazio. A espuma desfaz-se no ar, o filtro cedo ou tarde perde a cor. O que fica é o nada, e do nada nunca se construiu um futuro.

Like não respondeu. Não havia filtro capaz de disfarçar aquela bofetada sem mãos.

Na mesa, o café arrefecia. Dentro do bolso do rapaz, os likes, os engajamentos, as partilhas, as ideias ocas e levianas continuavam a arder em pixels.

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