Crónica inspirada numa história real
Morreu.
Morreu de quê?
De morte administrativa.
É jovem, cabo-verdiano, vivo e de boa saúde. Acaba de descobrir que, afinal, está oficialmente morto. Morto desde os dois anos de idade. Não metaforicamente morto — morto mesmo, nos registos do Estado, com certidão e tudo.
A história começa quando o cidadão, hoje com trinta anos, precisou de uma certidão de nascimento atualizada para registar o filho que tinha acabado de nascer.
Simples, não é? Mas a alegria de ser pai depressa se transformou em angústia e stress. O sistema, impiedoso e infalível, informou-o de que não constava entre os vivos. “Falecido”, dizia a base de dados, com frieza eletrónica.
Imagino o diálogo. Ele, de olhos arregalados, a argumentar desesperadamente que estava vivinho da silva, que o seu coração batia; e o funcionário, imperturbável, com cara de quem comeu e não gostou, a repetir:
— Lamento, mas é o que está no sistema.
Porque estes sistemas agora têm vida própria — e, pior, têm personalidade e que personalidade!
Que trapalhada e que trabalheira será para ele “regressar ao mundo dos vivos”! Provavelmente vão lhe exigir que apresente testemunhas, declarações e talvez até um selo azul que vão inventar na hora para que ele fazer prova de que afinal o seu coração ainda bate.
Parece ficção, mas não é. É uma história tão perturbadora quando absurda — e que merecia um pedido formal de desculpas do Estado. Mas “desculpas” é palavra que raramente se ouve no aparelho público. Bonecam-nos daqui, bonecam-nos dali, e sem costas quentes alguém é ninguém.
Se o jovem conseguir recuperar o humor depois desta novela burocrática, talvez um dia, quando tudo estiver resolvido e alguém lhe perguntar se tem uma história memorável para contar, ele sorria e diga:
— Se tenho! Sou um cabo-verdiano que morreu, ressuscitou — e tudo está devidamente documentado.
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