A reunião dos pais e encarregados de educação estava marcada para as 10 horas. Cheguei cinco minutos antes, mas já lá estavam a Bia e a Aninhas, uma dupla improvável.
Bia acredita piamente no inferno, um lugar concreto, localizado algures abaixo da terra, cheio de labaredas eficientes, preparado exclusivamente para pecadores, sobretudo os que não frequentam a missa com a assiduidade dela. Cumpre rituais com a disciplina de um soldado espiritual, apesar de passar a semana a praticar avareza, falta de empatia e pequenas crueldades sociais. Mas como se confessa religiosamente, acredita que a limpeza espiritual é automática e uma garantia de segurança eterna. Para ela, o inferno é “para os outros”.
Aninhas, sem religião, sem sacramentos e sem medo de fogo metafísico, acredita numa ideia muito mais incómoda: o inferno é aqui mesmo, fabricado diariamente pelas escolhas humanas, pela indiferença, pela maldade, pela falta de consciência. Para ela, não há demónios. Somos nós.
Por cortesia, sentei-me junto delas. Estavam numa conversa animada.
Bia falava com firmeza:
– “Claro que o inferno existe, Aninhas. Está lá em baixo, preparado para quem não se salva.”
Aninhas sorriu:
– “Que idiotice, Bia! O inferno não está lá em baixo. Está aqui. Basta olhar para o que as pessoas fazem umas às outras.”
Bia engoliu em seco.
– “Como aqui, Aninhas? Deus não deixaria. O inferno existe lá em baixo, sim, e serve para punir os maus.”
– Que baixo é esse, Bia?” – perguntou Aninhas, suave como uma lâmina afiada. – “Não basta ver aqui em cima o sofrimento que certas pessoas provocam? A maldade gratuita? A indiferença? Isso não te parece inferno suficiente?”
Bia abanou a cabeça, desconfortável:
– “Mas isso é só… comportamento humano. Os maus vão pagar depois.”
– “Depois?” – Aninhas levantou as sobrancelhas. – “Eu acho mais grave quando não pagam agora. Quando a maldade fica impune. Quando quem sofre é sempre o mesmo. Isso, Bia, é o inferno de verdade.”
Ui, ui, a conversa estava interessante. Inclinei-me ainda mais.
Bia tentou recuperar terreno:
– “Não posso acreditar nisso. Se não houver inferno lá em baixo… então onde é que Deus pune os pecadores?”
– “Talvez o castigo seja viver afastado da própria humanidade.” – respondeu Aninhas. “Talvez o inferno seja viver aqui, causando dor, achando-se sempre ‘limpa’ porque alguém te absolveu no confessionário.”
Silêncio.
Tenso.
Quase escaldante.
– “Muito bom dia. Agradeço a todos pela presença. Vamos começar a nossa reunião.” – disse a diretora de turma.
Uma hora depois, a reunião terminou e cada uma de nós, muda, seguiu o seu caminho.
De fato, há quem dedique a vida a evitar um inferno imaginário, enquanto constrói, sem perceber, um muito real à sua volta.