Terça-feira, 09 Dezembro 2025

Encostada à coluna

Maria Madalena: Inferno

A reunião dos pais e encarregados de educação estava marcada para as 10 horas. Cheguei cinco minutos antes, mas já lá estavam a Bia e a Aninhas, uma dupla improvável.

Bia acredita piamente no inferno, um lugar concreto, localizado algures abaixo da terra, cheio de labaredas eficientes, preparado exclusivamente para pecadores, sobretudo os que não frequentam a missa com a assiduidade dela. Cumpre rituais com a disciplina de um soldado espiritual, apesar de passar a semana a praticar avareza, falta de empatia e pequenas crueldades sociais. Mas como se confessa religiosamente, acredita que a limpeza espiritual é automática e uma garantia de segurança eterna. Para ela, o inferno é “para os outros”.

Aninhas, sem religião, sem sacramentos e sem medo de fogo metafísico, acredita numa ideia muito mais incómoda: o inferno é aqui mesmo, fabricado diariamente pelas escolhas humanas, pela indiferença, pela maldade, pela falta de consciência. Para ela, não há demónios. Somos nós.

Por cortesia, sentei-me junto delas. Estavam numa conversa animada.

Bia falava com firmeza:

“Claro que o inferno existe, Aninhas. Está lá em baixo, preparado para quem não se salva.”

Aninhas sorriu:

“Que idiotice, Bia! O inferno não está lá em baixo. Está aqui. Basta olhar para o que as pessoas fazem umas às outras.”

Bia engoliu em seco.

“Como aqui, Aninhas? Deus não deixaria. O inferno existe lá em baixo, sim, e serve para punir os maus.”

Que baixo é esse, Bia?” – perguntou Aninhas, suave como uma lâmina afiada. – “Não basta ver aqui em cima o sofrimento que certas pessoas provocam? A maldade gratuita? A indiferença? Isso não te parece inferno suficiente?”

Bia abanou a cabeça, desconfortável:

“Mas isso é só… comportamento humano. Os maus vão pagar depois.”

“Depois?” – Aninhas levantou as sobrancelhas. – “Eu acho mais grave quando não pagam agora. Quando a maldade fica impune. Quando quem sofre é sempre o mesmo. Isso, Bia, é o inferno de verdade.”

Ui, ui, a conversa estava interessante. Inclinei-me ainda mais.

Bia tentou recuperar terreno:

“Não posso acreditar nisso. Se não houver inferno lá em baixo… então onde é que Deus pune os pecadores?”

“Talvez o castigo seja viver afastado da própria humanidade.” – respondeu Aninhas.  “Talvez o inferno seja viver aqui, causando dor, achando-se sempre ‘limpa’ porque alguém te absolveu no confessionário.”

Silêncio.
Tenso.
Quase escaldante.

“Muito bom dia. Agradeço a todos pela presença. Vamos começar a nossa reunião.” – disse a diretora de turma.

Uma hora depois, a reunião terminou e cada uma de nós, muda, seguiu o seu caminho.

De fato, há quem dedique a vida a evitar um inferno imaginário, enquanto constrói, sem perceber, um muito real à sua volta.

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