Segunda-feira, 22 Dezembro 2025

Encostada à coluna

Maria Madalena de Jesus: Natal. Um regresso ao sentido

Nesta época do ano, a memória parece ganhar outra luz. Dizem que o Natal acende em nós uma espécie de claridade silenciosa, que nos obriga a olhar para trás com mais ternura e para a frente com menos medo. Talvez seja essa a graça deste tempo: lembrar-nos que, mesmo quando o mundo parece pesado, ainda há algo dentro de nós que pede renascimento. Não cresci num país recém-nascido; cresci num país por nascer. Cabo Verde, na minha infância, era mais promessa do que certeza. Éramos um povo a segurar a respiração, à espera de um futuro que seríamos nós a construir. Naquele tempo, ninguém falava em “propósito de vida”, a palavra depressão pouco ou nada se ouvia. O sentido da vida não era procurado, era herdado: vinha da família, da fé que nos embalava, da comunidade que nos ensinava a sobreviver pela união. Existir era um gesto coletivo duro, sim, mas sólido.

Hoje, o mundo corre tão depressa e tudo mudou. O sentido da existência passou a ser fabricado individualmente. Cada um que se vire. Cada um que descubra o seu porquê no meio de milhões de estímulos, de vozes, de comparações. E eu vejo tanta gente cansada… jovens com os ombros pesados, como se carregassem o peso do universo dentro do peito. Não é falta de futuro. É excesso de possibilidades. Possibilidades demais podem paralisar.

Nesta quadra, quando a família se junta, quando o cheiro de comida quente se mistura com as memórias antigas, penso muito nos meus netos. Penso no mundo que os espera. Penso se terão a força para construir, sozinhos, aquilo que para nós vinha da comunidade. Vejo nos olhos deles uma inquietação nova, uma fome de sentido que, às vezes, não encontra onde pousar.

Mas é também no Natal que encontro a minha resposta. Este tempo lembra-me que o sentido nunca está totalmente perdido. Pode estar escondido, adormecido, disperso… mas não se extingue. O Natal ensina-nos isso há séculos: que basta uma luz pequena para romper a escuridão. Que basta um gesto de amor para mudar uma vida. Que basta um encontro, um abraço, uma palavra honesta para que algo renasça. E talvez seja isso que tenho aprendido ao longo dos meus quase setenta anos:
o sentido não se fabrica no mundo; fabrica-se no encontro – encontro com os outros e consigo mesma.

Quando me sento sozinha, no silêncio que antecede a ceia, falo comigo como quem conversa com uma velha amiga. Pergunto: “E agora, depois de tudo, onde está o teu sentido?” E descubro que ele não ficou no passado da independência, nem nas lutas que travei, nem nos projetos a que dei a alma. O sentido está aqui, nesta capacidade de continuar. De esperar. De acreditar. De amar o país e as pessoas, mesmo quando o mundo parece do avesso.

Há dias em que o futuro assusta, não nego. Mas o Natal amacia esse medo. Lembra-me que a humanidade tem uma capacidade extraordinária de começar de novo. Já passámos por guerras, fomes, pandemias, perdas profundas… e ainda assim continuamos a erguer esperança como quem ergue uma casa. Quero que os meus netos saibam isso. Quero que Cabo Verde saiba isso. Que ninguém se perca a tentar inventar sozinho aquilo que só ganha forma no vínculo, na generosidade, no cuidado. Que não precisam carregar o mundo – basta carregar um pouco de luz.

E é isso que desejo este ano: que cada pessoa encontre, nesta véspera de Natal, um pequeno renascimento dentro de si. Que o sentido volte a ser um lugar possível. Que o futuro deixe de ser um peso e volte a ser um horizonte. Que este arquipélago – sempre teimoso, sempre resistente, sempre luminoso – reencontre a sua coragem de caminhar junto.

Porque, afinal, o Natal é isto: a prova de que a esperança, mesmo quando parece frágil, é mais forte do que todas as noites sem estrelas.

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