Ganância chegou primeiro. Era alta, vestia um fato cintilante de alfaiataria fina e exalava perfume caro. Cada passo seu fazia tilintar moedas invisíveis. Carregava no rosto um sorriso satisfeito, desses que se colam à pele de quem sempre quer mais — e sempre consegue. Indiferença chegou depois, descalça, de roupa simples, com os olhos semicerrados e expressão insondável. Não trazia pressa nem destino. Apenas existia, fluida, quase impercetível. Quando pisou o chão espelhado da cobertura, ninguém a viu chegar — e ainda assim, ela já estava em todo lugar.
Sentaram-se frente a frente, separados por uma mesa de vidro e uma vista panorâmica do mundo moderno.
— Já viste? — disse Ganância, apontando para a cidade — Estamos a viver a minha era. Nunca se produziu tanto, nunca se consumiu tanto. Tenho o mundo inteiro a correr atrás de mim: multinacionais, governos, influencers… até as crianças sonham comigo.
Indiferença soltou um leve suspiro. Nem aprovação, nem reprovação. Apenas silêncio.
— Eu corro — prosseguiu Ganância —, mas eles correm mais. Por likes, por lucros, por poder, por tronos de areia. Transformei até o tempo em moeda. E tu? Ainda aí parada, como sempre?
Indiferença ergueu os olhos, vagos como o mar em dia cinzento.
— Eu não corro. Nunca precisei. Basta-me ficar. E quando fico, tudo abranda: a empatia, a indignação, o cuidado. Ninguém me vê chegar, mas quando dou por mim, até os sonhos dormem.
Ganância sorriu, como quem reconhece a beleza num velho aliado.
— Preciso de ti — confessou — És tu que me dás espaço. Quando as pessoas deixam de sentir, posso levar-lhes tudo sem que notem: a dignidade, a terra, o tempo. Enquanto tu silencias, eu prospero.
Indiferença encolheu os ombros.
— E eu — continuou Indiferença, com voz lenta e desumana — faço com que ninguém veja. Quando uma criança morre à fome em Gaza, viro a cara. Quando migrantes se afogam a caminho da Europa, deixo-os afundar no silêncio. Quando a guerra destrói vidas na Ucrânia, no Sudão, em Myanmar ou no leste do Congo, olho para o telemóvel e deslizo o dedo. E o mundo imita-me — com gosto. Aprenderam a passar por cima do sofrimento como quem salta anúncios. Tudo continua. Nada os toca.
Por instantes, apenas o vento falou, batendo contra os vidros altos daquele império suspenso no ar.
Ganância ergueu a taça de cristal que tinha na mão e brindou:
— Ao nosso reinado. Enquanto os outros esperam justiça, partilham slogans e voltam à rotina… nós reinamos.
Indiferença não brindou. Apenas se levantou e olhou o horizonte. Ao longe, um letreiro de hospital piscava sem energia, e a notícia de mais uma tragédia urbana corria num rodapé mudo numa das janelas da cidade.
— O mundo cansa-se depressa — murmurou Indiferença — E quando se cansa, entrega-se. A ti, a mim, a quem tiver força bastante para agarrar.
Ganância riu. Uma gargalhada seca, metálica.
E assim, as duas desapareceram na noite, deixando para trás apenas o som abafado da cidade — que seguia, incansável, sem saber quem, de verdade, a governava.
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