Encontrei a senhora Independência num humilde café da capital. Era uma tarde morna, sem grandes promessas. Ela, no entanto, parecia carregar o peso de todas as promessas não cumpridas. Prestes a completar 50 anos, exibia olheiras profundas, roupa gasta e um semblante desiludido. O café à sua frente já esfriara — talvez aguardasse, em vão, por dias mais quentes.
Perguntei-lhe como estava a vida. Sorriu sem entusiasmo e respondeu:
— Ora, minha querida, tudo depende da época. Sou celebrada uma vez por ano, com sessões solenes e coroas de flores. Quando o aniversário é redondo, como este 50, ganho desfile, concertos, e até debates televisivos com especialistas a dizerem que sou um marco.
Mas no dia seguinte desapareço das conversas e da memória coletiva. Ninguém me reconhece na rua, ninguém pergunta por mim. Alguns até dizem que nunca deveria ter existido…
A frase ficou no ar, suspensa entre o sarcasmo e a tristeza. Lembrei-me então dos comentários nostálgicos que ouço aqui e ali, geralmente murmurados, como quem partilha um segredo constrangedor: “Na altura da colónia é que era… tudo funcionava, havia respeito, cada um no seu lugar.”
A senhora Independência suspirou. Remexia o café frio com a colher, como quem procura dignidade no fundo da chávena.
— E o mais curioso — diz — é que o maior investidor do país continua a ser… surpresa! A antiga potência colonizadora. Hoje já não chega de navio nem de farda, mas em voos de classe executiva, com fatos bem cortados, laptops reluzentes e apresentações em PowerPoint. Emprestam dinheiro, financiam projetos, reestruturam instituições — tudo com aquele sorriso paternalista de quem se habituou a mandar, mesmo quando finge apenas aconselhar. “Estamos aqui como parceiros”, garantem, com um sotaque familiar e um vocabulário técnico irresistível. Só que, no fim, os termos do contrato vêm prontos, os estudos de viabilidade, o marketing, o merchandising, os consultores vêm todos de lá, e até o Wi-Fi que usamos nos nossos serviços públicos vem da infraestrutura deles. Somos tão “independentes” que precisamos de validação externa até para implementar uma política agrícola ou digitalizar um registo de nascimento.
Fez uma pausa, antes de prosseguir com ironia:
— O povo aplaude, veste a t-shirt da cerimónia, enche praças para ver visitas oficiais, e continua a assinar acordos de… dependência — perdão, de cooperação. A nova dependência veste-se melhor, usa termos mais elegantes e fala de “resiliência institucional” — mas, no fundo, é a mesma de sempre, agora com slides animados.
O tempo avançava. A tarde escurecia. A senhora Independência levantou-se com alguma dificuldade, ajeitou o casaco gasto — o mesmo de sempre, remendado por reformas e revisões constitucionais — e preparou-se para partir. Antes, deixou-me um último comentário:
— A liberdade é um conceito elástico. Eu estou aqui — nas datas, nos livros, nos discursos —, mas não temos a plena consciência de quem dependíamos. Hoje, fingimos que não dependemos de nenhum Estado e continuamos na nossa vidinha.
Com um aceno melancólico, levanta-se, sai porta afora e desaparece entre os becos da cidade, onde discursos inflamam e a dependência se disfarça em novas roupagens, com um sotaque familiar e contratos assinados com letras miúdas.
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