Sábado, 06 Setembro 2025

Em tom de opinião

O país que ensina a decifrar letras, mas não alimenta leitores

Por: Maria Graça 

O ano letivo 2025/2026 arranca no dia 15 de setembro em todo o território nacional. Este é sempre um momento de renovação de esperanças e compromissos, mas também de reflexão crítica sobre os grandes desafios da educação cabo-verdiana. Um deles é, sem dúvida, o analfabetismo estrutural.

Cabo Verde orgulha-se de apresentar, no plano estatístico, um dos melhores indicadores de alfabetização em África: entre os jovens de 15 a 24 anos, mais de 98% sabem ler e escrever, um feito notável que reflete décadas de investimento na escolarização. Mas os números, ainda que positivos, não contam a história toda. A realidade quotidiana mostra que a alfabetização formal não encontra, muitas vezes, continuidade na vida cultural: as bibliotecas são raras, as livrarias escassas, os cinemas praticamente desapareceram e as exposições ou tertúlias académicas acontecem de forma pontual e limitada.

Este cenário revela o cerne do analfabetismo estrutural: não resulta de falhas individuais, mas de condições sociais e culturais insuficientes. Quando um país não garante bibliotecas acessíveis, oferta cultural diversificada e espaços de debate, forma cidadãos alfabetizados, mas não necessariamente cultos, críticos ou inovadores.

Esse vazio cultural fragiliza a formação integral do estudante cabo-verdiano, porque restringe o acesso a experiências que alimentam a imaginação, a curiosidade e o pensamento crítico, e acaba por limitar também a capacidade do país em formar profissionais qualificados, com espírito inovador e criativo, preparado não apenas para executar tarefas, mas para compreender, propor soluções e gerar novas ideias num mundo cada vez mais competitivo e exigente.

A escola ensina a decifrar letras, mas a sociedade não oferece meios para cultivar o gosto pela leitura, exercitar o pensamento crítico ou transformar a alfabetização em prática viva. Assim, o país corre o risco de celebrar altos índices de alfabetização formal, enquanto permanece vulnerável ao analfabetismo funcional e, mais profundamente, ao analfabetismo estrutural — aquele que nasce não da incapacidade individual, mas das condições sociais e culturais que restringem o pleno florescimento da cidadania e do potencial humano.

Saber ler e escrever não significa, necessariamente, ser capaz de interpretar criticamente um texto, compreender instruções complexas ou participar em debates sobre a sociedade. É justamente aqui que se revela o analfabetismo funcional: quando a leitura e a escrita existem, mas não são usadas como ferramentas de vida, de trabalho e de criatividade. Em Cabo Verde, a escola alfabetiza, mas sem continuidade cultural fora dela, o conhecimento corre o risco de ficar preso às paredes da sala de aula. É como plantar uma árvore sem água: cresce, mas não dá fruto.

A insularidade, já por si limitadora, agrava-se quando a circulação de livros, filmes e ideias não encontra canais de mediação. A desigualdade entre ilhas — algumas sem qualquer biblioteca — reforça zonas de silêncio cultural, onde a leitura não se converte em prática quotidiana.

Paradoxalmente, Cabo Verde é um país de enorme riqueza cultural imaterial: música, poesia, oralidade, histórias populares que atravessam gerações. Mas essa riqueza pouco dialoga com a leitura e a escrita. A cultura oral permanece viva, mas carece de registo, difusão e valorização escrita que a coloque ao serviço da literacia crítica e da criatividade contemporânea. Assim, a sociedade cabo-verdiana arrisca-se a formar gerações “alfabetizadas, mas não cultas”, com ferramentas básicas, mas sem capacidade plena de as aplicar no mundo do trabalho, na vida cidadã e na criação cultural.

Superar o analfabetismo estrutural não exige apenas grandes investimentos, mas estratégias inteligentes, simples e comunitárias:

  • Bibliotecas comunitárias móveis, que circulem entre localidades com livros, jornais e acesso digital.
  • Cineclubes e cinemas ao ar livre, seguidos de debates, estimulando reflexão crítica.
  • Clubes de leitura e tertúlias comunitárias, em escolas, igrejas ou associações culturais.
  • Exposições itinerantes, levando arte e fotografia a todas as ilhas.
  • Plataformas digitais de acesso gratuito a livros e filmes, com apoio da diáspora.
  • Valorização da oralidade em diálogo com a escrita, registando contos, músicas e histórias populares.

Cabo Verde pode orgulhar-se dos seus índices de alfabetização, mas precisa enfrentar o desafio de transformar a alfabetização formal em literacia plena. Isso só acontecerá quando a leitura, a escrita e o debate se tornarem práticas culturais acessíveis a todos, em todas as ilhas.

A questão já não é apenas de escola, mas de sociedade e cultura. Combater o analfabetismo estrutural é garantir que a alfabetização deixe de ser somente um número e passe a ser um instrumento de cidadania crítica, produtividade qualificada, criatividade e liberdade.

Tags

Partilhar esta notícia