Sexta-feira, 31 Outubro 2025

Em tom de opinião

Maria Graça: O Mundo a Fechar e os Nossos Jovens à Porta do Futuro

Vivemos tempos paradoxais. Nunca o mundo pareceu tão próximo — e, ao mesmo tempo, tão distante. As tecnologias aproximam-nos num clique, os voos encurtam as distâncias, as redes sociais fazem-nos crer que habitamos uma aldeia global. Mas, na realidade, as fronteiras voltaram a erguer-se — não só nas linhas do mapa, mas também nos corações e nas políticas. O século XXI, que prometia abertura e partilha, tornou-se o tempo da desconfiança e do fechamento.

A nova Lei de Estrangeiros em Portugal é um sinal visível dessa viragem. O país considerado irmão, que durante décadas acolheu a esperança cabo-verdiana e lhe deu chão, agora impõe novas barreiras à entrada e à permanência.  O processo que antes se fazia com paciência e fé, tornou-se um labirinto burocrático, onde os sonhos se esgotam em filas, plataformas e prazos sem resposta. Mas Portugal é apenas o rosto mais próximo de uma tendência global. A Europa inteira está a encolher-se, a redimensionar a sua ideia de fronteira, a gerir o medo do outro, a pesar o custo da hospitalidade. 

Fecha-se para os muitos e abre-se, seletivamente, para os poucos: os altamente qualificados, os que trazem consigo diplomas, competências raras, patentes e inovação. Quer dizer: o mundo não rejeita pessoas, rejeita a precariedade. E isso, por mais duro que soe, deve servir-nos de alerta e inspiração. Porque se o mundo está a escolher o talento, Cabo Verde não pode continuar a perdê-lo.

Durante décadas, a emigração foi o motor silencioso do nosso desenvolvimento. Foi o braço que construiu casas, sustentou famílias e alimentou o sonho da educação dos filhos. A diáspora cabo-verdiana é um dos maiores patrimónios do país. Mas o tempo mudou. O que antes era um movimento natural e possível, hoje é uma travessia cheia de barreiras. E enquanto as portas se fecham lá fora, os jovens continuam a bater nelas — cada vez mais ansiosos, cada vez mais desiludidos, cada vez mais convencidos de que o futuro está noutro lugar.

No meio de todo esse mar de dificuldades, há no entanto, algo a acontecer dentro das nossas próprias fronteiras.
Lentamente, mas com firmeza, estão a surgir novas dinâmicas — e muitas delas nascem das universidades. A Universidade de Cabo Verde, através do seu laboratório de inovação tecnológica iCUB, tem sido palco de experiências notáveis. O projeto SITA – Sistema de Informação de Transporte Aéreo, desenvolvido por jovens estudantes e premiado nos Digital Awards 2024, é um exemplo simbólico de uma geração que já não espera que o mundo mude — cria soluções para transformá-lo.

A Uni-INCUBA, incubadora da Uni-CV, dá corpo à mesma visão: apoiar empreendedores e recém-licenciados a transformar ideias em negócios, conhecimento em produto, formação em futuro. Através do programa Erasmus+ Campus África, estudantes viajam, aprendem e regressam com novas competências, novas redes e um olhar mais global sobre o que é possível fazer cá dentro.

Outras instituições também estão a agir. A Universidade de Santiago, em parceria com o Instituto Politécnico de Santarém, lançou o projeto “Inovação Digital CV”, levando ferramentas e literacia tecnológica às escolas de Santiago e oferecendo aos seus alunos universitários oportunidades concretas de estágio e aplicação prática do que aprendem.

São gestos silenciosos, mas revolucionários: indicam que a inovação já não é monopólio de laboratórios distantes, mas começa a florescer nas ilhas, entre jovens com vontade de fazer diferente. Essas experiências, ainda incipientes, têm um valor que ultrapassa o seu impacto imediato.
São sinais de que o país acredita em si mesmo. De que a juventude cabo-verdiana — tantas vezes reduzida à estatística da emigração — é também criadora, empreendedora e resiliente.

Movimentos como o “Di Povo pa Povo”, que recentemente encheram as ruas de energia e consciência social, confirmam essa mudança de mentalidade: há uma geração que não quer apenas partir, quer participar; não quer apenas reclamar, quer propor; não quer apenas sobreviver, quer construir.

Mas para que essa energia não se perca, é urgente um novo pacto nacional pela juventude. Um pacto que vá além das promessas e dos slogans, e que una o Estado, as universidades, as empresas e a sociedade civil numa mesma visão:  a de um país que educa para o futuro, investe no conhecimento e valoriza o mérito. Um país que cria condições para que quem estuda possa trabalhar, para que quem empreende possa prosperar, e para que quem sonha não precise de emigrar para viver com dignidade.

Formar é mais do que ensinar: é criar raízes. Se o mundo está a valorizar o talento qualificado, Cabo Verde tem de o multiplicar e protegê-lo, tornando-o motor do seu próprio desenvolvimento. Isso implica repensar políticas públicas, financiar a inovação, estimular a investigação científica e criar ambientes de trabalho que dignifiquem o saber. Implica, também, repensar o ensino — não apenas como transmissão de conteúdos, mas como espaço de descoberta, de pensamento crítico e de responsabilidade cidadã. O desafio é imenso, mas a oportunidade é ainda maior.

Porque num mundo que se fecha, Cabo Verde pode ser o lugar que se abre — às ideias, à ciência, à cultura, à criatividade. Podemos ser um país pequeno em território, mas grande em pensamento e em ação e já demos prova disso. O mundo está a fechar-se, sim. Mas essa é a oportunidade de escancararmos as nossas portas ao conhecimento, à confiança e à coragem, porque o futuro não espera por vistos nem autorizações de residência.

O futuro constrói-se — aqui, nas ilhas, com as mãos e os sonhos dos nossos jovens. E é deles que depende a esperança, essa forma mais luminosa de resistência.

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