Sábado, 26 Julho 2025

Em tom de opinião

Maria Graça: Eu tenho um sonho!

Fecho os olhos e vejo um arquipélago de dez ilhas e cinco ilhéus, com uma localização geográfica invejável, um clima ameno e estável, habitado por uma população jovem e cheia de potencial, uma estabilidade política e social referenciada internacionalmente. Vejo jovens empregados, com salários dignos, motivados a permanecer no país e a contribuir para o seu desenvolvimento. Vejo indústrias de transformação alimentar florescerem — aproveitando a manga e a cana do interior de Santiago, a uva, a maçã, o caju e o figo do Fogo, o queijo de Santo Antão, a abóbora de São Nicolau, o peixe do Maio — e a exportarem para toda a África Ocidental. Vejo agricultores com acesso a água, mercados e assistência técnica. Vejo ilhas com bons cais de pesca e pescadores com embarcações modernas, condições sanitárias adequadas e reconhecimento profissional. Vejo hospitais em todas as ilhas bem equipados, escolas de excelência e, sobretudo, posso viajar de uma ilha para outra quando quero e à hora que quero. Abro os olhos. Vejo jovens a querer partir. Agricultores a lavrarem a terra com enxadas, como os meus bisavôs faziam. Pescadores que arriscam a vida em embarcações precárias. Famílias com dificuldades para transportar um doente em situação de urgência para outra ilha. E vejo recursos — muitos — canalizados para setores ainda frágeis, como o das startups, enquanto as necessidades básicas continuam por satisfazer.

As startups tornaram-se uma das bandeiras da política de desenvolvimento de Cabo Verde. Existem hoje mais de 50 registadas, sobretudo nas áreas digitais, apoiadas por programas públicos, financiamentos internacionais, centros de incubação, formações e pitchs inspiradores. Algumas fazem um trabalho notável: transformam redes de pesca em arte e sustento, apostam na reciclagem e em embalagens agrícolas, ou promovem o turismo local de forma inovadora.

Sim, o mundo está cada vez mais digital. Ignorar isso seria negar a realidade do século XXI. Mas se a grande aposta for no digital e nos esquecermos das pessoas, das comunidades e das infraestruturas básicas, esse digital não terá onde se enraizar. Não terá a quem servir. Não vincará. De que vale sermos o segundo melhor ecossistema de startups da África Ocidental, se em São Nicolau ou no Fogo um agricultor não consegue escoar os seus produtos por falta de ligações marítimas e aéreas regulares? Se vamos à Brava por três dias e corremos o risco de ficar lá presos um mês, por ausência de transporte? Se muitos pescadores ainda lidam com carências tão elementares como o acesso ao gelo para conservar o pescado ou um cais digno?

Acredito que, mais do que promovermos qualquer ideia digital envolta em discursos de marketing poderosos — muitas vezes respondendo a agendas internacionais —, Cabo Verde precisa de refletir seriamente sobre o tipo de startups que realmente necessita. Precisamos de startups que respondam aos desafios concretos das ilhas. Startups que melhorem a mobilidade interilhas com soluções de partilha de transporte marítimo, bilhética integrada e gestão inteligente de rotas. Startups dedicadas às pescas, com tecnologias de conservação do pescado, rastreabilidade, e plataformas digitais que liguem diretamente os pescadores aos mercados. Startups que levem tecnologia ao campo: irrigação inteligente, aplicações para previsão climática, acesso facilitado a microcrédito rural.

Precisamos de startups que atuem em parceria com os setores produtivos, e não à margem deles. Startups que fixem os jovens no país, oferecendo-lhes mais do que um laptop: oferecendo-lhes propósito, renda e futuro. O país beneficiará também de soluções na área da transformação alimentar, com microindústrias de secagem, conserva e embalamento de produtos locais. Na educação, há espaço para plataformas de ensino profissional online, certificações modulares e formação prática ajustada às realidades do mercado nacional. Na saúde, podem surgir startups de telemedicina, gestão remota de consultas e rastreio comunitário de doenças.

Não menos importantes são as startups que levem energia solar, purificação de água e sensores de monitorização a zonas isoladas. E, claro, startups que valorizem o turismo comunitário, com plataformas de reservas, narração de histórias locais e distribuição justa dos rendimentos turísticos. Porque a inovação verdadeira não é a que imita modelos externos, mas a que resolve problemas locais que impactam positivamente as populações.  É preciso investir onde o impacto é maior, mais urgente e mais justo.

Eu tenho um sonho. E esse sonho começa com uma escolha: a de fazer do essencial o nosso verdadeiro ponto de partida.

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