Quinta-feira, 22 Maio 2025

Editorial de Maria Graça – Diretora Geral 

Em tom de opinião

Editorial de Maria Graça: Família, entre o ideal e a realidade

No calendário das datas simbólicas, o Dia Internacional da Família, celebrado ontem, 15 de maio, convida-nos a refletir sobre o núcleo mais antigo da sociedade, aquele que — em teoria — deveria ser o nosso primeiro lugar de acolhimento, proteção e identidade. Mas, nestes tempos conturbados em que vivemos, há um descompasso evidente entre o que a família deveria ser e o que efetivamente é para milhões de pessoas. A família, idealmente, é sinónimo de afeto, escuta, pertença. É onde se aprende a amar e a ser amado. É o espaço onde se pode cair e ser amparado, onde a partilha prevalece sobre o julgamento, onde se transmitem valores como o respeito, a solidariedade e a responsabilidade. É o refúgio diante das adversidades do mundo — o porto seguro onde a nossa humanidade pode florescer. Contudo, a realidade atual desenha um quadro mais fragmentado e, por vezes, doloroso. A pressão constante do trabalho, a crise económica, o desemprego, a migração forçada, a sobrecarga das mulheres nos papéis de cuidadoras e a ausência emocional — ou física — de muitos pais tornam o dia a dia familiar um lugar de tensão, desencontro e sobrevivência.

As famílias modernas vivem entre silêncios e rotinas apressadas. Conversa-se pouco, convive-se menos. A tecnologia, embora aproxime geografias, muitas vezes afasta emocionalmente. Crianças crescem com acesso ao mundo digital, mas sentem falta de atenção genuína. Mulheres, sobretudo mães, continuam a desempenhar múltiplos papéis com pouca rede de apoio. E os idosos, que tanto contribuíram, veem-se à margem, quando deveriam ocupar um lugar de honra.

Esta dualidade — entre o ideal e o vivido — não é nova, mas tornou-se mais visível. E é urgente não a ignorar. Precisamos de políticas públicas que apoiem os cuidados e protejam os vínculos. Precisamos de tempo: tempo para cuidar, para dialogar, para escutar. Precisamos, sobretudo, de coragem para reconhecer que a família não se sustenta apenas no sangue ou na tradição, mas na prática diária de empatia, esforço e compromisso.

Talvez o maior gesto revolucionário hoje seja reaprender a conviver. Reconstruir os laços a partir do que temos: imperfeições, feridas, histórias. E transformar as casas em espaços de reencontro — com o outro e connosco mesmos.

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, diz que: “A família de onde vens não é tão importante quanto a família que vais construir.” Efetivamente, podemos reescrever o enredo e romper com o determinismo dos afetos herdados e a assumir a autoria da nossa própria história relacional. Podemos curar o que doeu, romper com padrões tóxicos e escolher conscientemente os vínculos que queremos construir a partir de agora.

A família que vamos construir — com parceiros, filhos, amigos, ou mesmo sozinhos — pode ser um espaço de afeto autêntico, de liberdade e de apoio mútuo. Pode ser mais justa, mais inclusiva, mais sensível. Pode ser uma comunidade pequena e íntima ou ampla e estendida, desde que nos faça sentir vistos, respeitados e pertencentes.

Construir uma nova família é um ato de coragem. Requer desaprender o que nos feriu, cultivar o que nos faz bem e, acima de tudo, assumir que ser família é uma prática, não apenas uma herança. É o que se escolhe todos os dias: ouvir, cuidar, pedir desculpa, proteger, sustentar — mesmo quando não é fácil.

Portanto, honrar a família de onde viemos, se for o caso, é válido. Mas é ainda mais revolucionário e transformador construir uma família onde o amor não seja uma obrigação, mas uma presença viva e constante.

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