A mesma sensibilidade que leva os artistas a conquistar o público, cria uma vulnerabilidade que os consome, diz Denise Devenish, da Help Musicians. Para esta especialista, o problema intensifica-se quando o artista começa a procurar validação externa, medindo o seu valor através de likes e críticas nas redes sociais.
Por: Renibly Monteiro
“Um artista pode colocar o coração e a alma num álbum e não ter resposta positiva. Subitamente, o valor do projeto diminui e o valor pessoal é afetado”, explica Devenish, que sublinha que esta dinâmica cria um ciclo vicioso. Muitos artistas que se apresentam muito confiantes, na verdade, são incrivelmente inseguros por dentro. Fato este que, para esta profissional, justifica a quantidade de artistas a “morrer à nossa frente quando pensávamos que eram incrivelmente seguros de si. Na verdade, estavam quebrados interiormente”.
A espiral da pobreza musical
A raiz do problema está, segundo esta terapeuta, no modelo económico da indústria. Devenish explica que para ganhar dinheiro no Spotify, ou em outras plataformas, o artista precisa de milhões de reproduções para obter qualquer tipo de rendimento decente, uma realidade que força os músicos a uma vida de múltiplos empregos e instabilidade crónica. “Muitos dos músicos com quem falo não fazem apenas música, porque não conseguem sustentar uma vida apenas com a sua arte. Estão constantemente cansados, tentando justificar o tempo dedicado à música”, alega Devenish, para quem a situação se agrava com a pressão das atuações ao vivo, que frequentemente constituem a única fonte de rendimento viável. “Tocar pode ser massivamente stressante para o corpo. Viajar com fusos horários diferentes, ter atuações intensas, e depois ter que voltar a uma vida normal é extremamente difícil”, diz a especialista, identificando estes hábitos como alguns dos principais desafios da profissão.
Fronteiras inexistentes e burnout sistemático
A terapeuta alerta para um problema estrutural que considera fundamental: a incapacidade dos artistas estabelecerem limites. “Dizer sim a tudo para não perder uma oportunidade não é bom para o corpo, nem para o sistema nervoso”, alerta. A vida de um músico profissional não conhece fronteiras, pois o corpo come em horários diferentes, viaja pelo mundo, cria em horas diferentes. “Podem receber chamadas de uma grande editora às 2 ou 3 da manhã. Podem ser chamados para um estúdio na próxima semana”, explica Devenish, descrevendo uma mentalidade freelancer que adoece a mente de qualquer artista.
Esta realidade leva ao que a especialista classifica como um burnout sistemático, que faz com que o artista trabalhe incansavelmente para o sucesso, levando a sua arte e a indústria musical para casa, eliminando a separação entre a pessoa e o artista. “Às vezes, uma ideia criativa vem como uma onda e têm que ir com ela. Mas na verdade têm é que acabar com ela, criar uma fronteira”, diz Denise Devenish, sublinhando que o final de um espetáculo é mais importante do que a preparação. A especialista identificou o momento pós-espetáculo como particularmente vulnerável. ” A adrenalina e o cortisol estão muito altos. Estão empolgados e não sabem como descer, como voltar ao hotel e à família”.
Do reconhecimento a novas obsessões
O recurso a substâncias psicoativas surge como consequência direta desta pressão sistemática e Devenish pontua mudanças geracionais preocupantes: “Os artistas jovens não tomam tantas drogas e álcool, mas agora têm redes sociais, então há mais vaidade, mais obsessão”. A especialista identifica também padrões específicos em diferentes géneros musicais, já que a indústria musical é neurodiversa. Por exemplo, aponta Devenish, muitos músicos clássicos lutam com o perfeccionismo extremo, são obcecados com acertar em tudo, não foram ensinados a ouvir-se a si próprios. Este perfeccionismo de acordo com esta especialista, torna-se uma armadilha, quando estão muito stressados, evitam praticar, ficam bloqueados, mas não têm tempo para parar, pois estão sob pressão.
Artistas nacionais falam sobre a importância da saúde mental na classe artística
Os alertas de Devenish, feitos à margem do Atlantic Music Expo 2025, em março último, encontraram eco imediato junto de artistas cabo-verdianos. Batchard confirma que é difícil gerir a pressão constante: “O artista tem a alma sensível, e isso faz com que sinta as coisas com maior intensidade. Isso é uma bênção e, ao mesmo tempo, uma maldição. Esta sensibilidade é que nos permite criar, mas ela mesma traz sofrimentos”. O rapper revelou que os estereótipos agravam ainda mais o problema. A ideia de que o artista tem de ser sempre forte atrapalha a essência e a identidade. “Como se diz que homem não deve chorar, acredita-se também que os artistas não podem ter os seus dilemas”. Para Batchard, a conferência da colaboradora da Help Music foi reveladora: “É a primeira vez que ouvi alguém falar sobre saúde mental aplicada à classe artística. Aprendi que, para além de se preparar para grandes eventos, o artista deve ser treinado para desligar também. É necessário aprender a separar o “eu artístico” do “eu pessoa humana”.
O músico Leroi Pinto partilhou também uma realidade crua: a necessidade de mascarar o sofrimento. “Muitas vezes, utilizamos uma ‘capa’ para não mostrar aquilo que sentimos. Já tive a experiência de viver uma dor na minha vida pessoal, mas tive que me manter firme para cumprir a agenda que tinha como artista”. A frustração com a falta de reconhecimento é outro problema que o músico aponta, frisando que, muitas vezes, o esforço do artista para criar músicas não é compensado com o engajamento do público, daí a importância de aprender a lidar com isso todos os dias. Cjey Patronato, rapper, destaca o perigo da pressão mediática: “Nos mídia o artista pode ter uma imagem de artista feliz, mas ele pode não estar bem verdadeiramente. Se eu estiver bem comigo mesmo, o meu lado artístico também estará bem”Os testemunhos dos artistas cabo-verdianos validam estas preocupações, tornando ainda mais urgente a implementação de medidas de apoio psicológico no setor. A unanimidade entre a especialista internacional e os artistas locais sobre a gravidade da situação assume particular relevância num momento em que Cabo Verde procura afirmar-se no panorama musical internacional, lembrando que por trás de cada melodia que emociona existe um ser humano que precisa também de cuidado e proteção.
Soluções e Mudança de Paradigma
Devenish defende que a verdadeira medida de sucesso é um sistema nervoso calmo: “Não é sobre dinheiro. É sobre poder amar aqueles que amamos e a nós próprios o suficiente para continuar”. A especialista, que defende a necessidade de normalizar a terapia, argumenta que, se cada artista encontrar um terapeuta certo, pode salvar a própria vida, pois “cuidar de si mesmo é necessário”.
A abordagem terapêutica proposta por Denise Devenish baseia-se na psicologia Gestalt, focada no que se chama “trabalho de partes”. Isto significa trabalhar a mente para autovalorização, criar uma identidade pessoal forte, separada da identidade artística. O objetivo é criar uma “árvore” de autovalorização interna tão forte que o artista possa sempre regressar a ela, independentemente da validação externa. “Tem que haver uma separação clara entre o artista e a pessoa, senão o artista pode ser consumido pela sensibilidade”, enfatiza a terapeuta, que também faz um apelo para que haja mais cuidado com os músicos por parte de quem ama música. Devenish alerta que trabalhar na indústria musical implica muitos altos e baixos, tornando essencial encontrar o valor próprio através do autocuidado. Apesar de ainda persistir o estigma em relação à saúde mental, a terapeuta mantém-se otimista. “Ainda não há leis de segurança oficiais na indústria, mas isso está a mudar.
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