A acelerada evolução tecnológica está a criar um fosso crescente entre aquilo que se ensina nas instituições cabo-verdianas e as competências exigidas pelo mercado de trabalho. Num país onde a escassez de formadores qualificados limita a oferta de cursos, a evolução tecnológica assume contornos particularmente urgentes. Especialistas afirmam que a solução passa pela participação direta das empresas no processo formativo.
Por: Renibly Monteiro
Recentemente, a cidade da Praia acolheu o evento Empodera Tech Cabo Verde Internacional Summit, onde estiveram reunidos especialistas da área da tecnologia para debater sobre o futuro da educação na era digital.
Inteligência artificial: transformar ou substituir o professor
A integração da inteligência artificial no ensino emergiu como tema central do debate, com o reitor da Universidade Técnica do Atlântico (UTA), João Duarte a defender que a tecnologia não substitui o educador, mas transforma profundamente o seu papel. Para o reitor da UTA, o modelo tradicional de ensino já não corresponde às expectativas da geração atual de estudantes.
“Os estudantes, hoje, querem ter aquilo que nós chamamos de ubiquidade, querem ter acesso aos conteúdos no momento que quiserem, no lugar onde estiverem”, explicou o responsável. Esta flexibilidade permite que cada estudante construa o seu plano de estudos em função do seu contexto individual, numa abordagem mais personalizada e adaptada.
Neste novo paradigma, segundo Duarte, o professor passa de transmissor de conhecimento a orientador, estimulando a criatividade para resolver problemas inéditos e criar soluções inovadoras. Na oportunidade, Duarte anunciou que a UTA já disponibiliza à sua comunidade académica um assistente de inteligência artificial ilimitado, sistemas de gestão de aprendizagem como o Classroom, armazenamento na nuvem, ferramentas de videoconferência como o Meet e software de produção de documentos.
“Estão disponíveis todas as ferramentas para que isso aconteça”, garantiu o reitor, ressalvando que “é necessário que o professor esteja capacitado para isso”.
Escassez de formadores restringe cursos ao período pós-laboral
A falta de formadores constitui um dos obstáculos mais concretos à expansão da formação tecnológica em Cabo Verde. Segundo A CEO da Devtrust e representante da Labanta Academia, Joelma Tavares, os profissionais que poderiam assumir funções formativas encontram-se empregados durante o período laboral, o que limita drasticamente a oferta de cursos. “Nós temos uma dificuldade real de formadores, só conseguimos realizar formações no período pós-laboral”, revelou.
Nas palavras de Joelma, esta limitação tem consequências diretas na capacidade de resposta das instituições formativas às necessidades do mercado. A solução, reitera Tavares, passa inevitavelmente pela disponibilização de colaboradores por parte das empresas, criando um ciclo virtuoso entre formação e prática empresarial.
Adolescentes de 15 anos já programam com apoio de inteligência artificial
A realidade da utilização de inteligência artificial pelos mais jovens já é palpável em Cabo Verde. Joelma Tavares partilhou a experiência do programa DevExplorer, através do qual a Devtrust acolhe adolescentes do ensino secundário interessados em tecnologia, permitindo-lhes desenvolver projetos durante dois a seis meses.
No entanto, Tavares alerta para os riscos associados ao uso destas ferramentas por profissionais juniores que ainda não possuem maturidade conceptual suficiente, por isso, considera que o desafio está em orientar profissionais que ainda não têm experiência suficiente para questionar criticamente o apoio fornecido pela inteligência artificial.
“O suporte destas ferramentas é muito eficaz, mas há um risco associado quando, por exemplo, são profissionais ainda juniores e que não têm ainda a maturidade dos conceitos e a base teórica”, explicou.
Currículos rígidos dificultam integração de novas tecnologias
A questão dos currículos académicos emergiu como outro ponto crítico no debate sobre a colaboração entre startups tecnológicas e universidades. Joelma Tavares reconhece que a adaptação curricular é um processo que requer trabalho significativo, mas defende a criação de maior flexibilidade nos planos de estudo.
“Se os nossos currículos tiverem flexibilidade suficiente, por exemplo, incluir as novas tecnologias, nós só precisamos ter pessoas com conhecimento do mercado, com conhecimento das tendências, a participarem no processo formativo”, explicou a CEO.
No entanto, voltou a sublinhar que esta solução está condicionada pela disponibilidade de profissionais e pela persistente limitação de só ser possível oferecer formações no período pós-laboral.
Participação empresarial vai além dos estágios tradicionais
A representante da Labanta Academia, afirma que “este gap só poderá ser diminuído, se as empresas participarem no processo de ensino”. Segundo a responsável, embora o Governo disponha de várias medidas para mitigar o problema, é fundamental que o setor privado assuma um papel mais interventivo.
Esta participação, sublinhou Tavares, deve ir muito além da simples receção de estagiários. A executiva propõe que as empresas disponibilizem os seus colaboradores para atuarem como formadores, mesmo mediante contrapartida financeira. Para Joelma, esse gesto é “uma oportunidade de ensinar a esses jovens, através das práticas desta empresa em específico”.
Na perspetiva da CEO, este modelo traria vantagens mútuas: as empresas receberiam futuros colaboradores já formados segundo as suas práticas específicas, enquanto o país colmataria a escassez de formadores especializados. Contudo, Joelma Tavares reconhece que o desafio será permanente.
“Este desafio continuará sempre a existir, porque a velocidade com que as tecnologias evoluem e mudam, surgem novas tecnologias”, afirmou, defendendo que o objetivo não é eliminar completamente o desfasamento, mas criar estratégias para o diminuir e acelerar a introdução de tendências tecnológicas no ensino.
Importância da presença empresarial na elaboração curricular
O reitor da UTA, alinha com a posição de maior envolvimento empresarial, mas propõe que essa participação comece ainda mais cedo, ou seja, na própria conceção dos currículos. “É fundamental que entidades empresariais, do setor privado, possam também contribuir na elaboração dos currículos da formação”, defende o responsável académico.
João Duarte identificou quatro pilares fundamentais nas universidades, ensino e aprendizagem, investigação, transferência de conhecimento para a sociedade e internacionalização, contudo, considera que os currículos acreditados têm peso determinante na trajetória dos estudantes e futuros profissionais. Por isso, argumenta que a colaboração entre academia e empresas deve estender-se também aos projetos de investigação, nomeadamente através da criação de laboratórios para serviços necessários nas empresas, permitindo a aplicação prática dos conhecimentos.
O reitor refere que este modelo já é uma realidade em países desenvolvidos, onde as empresas financiam universidades para resolver problemas específicos que enfrentam. Contudo, reconhece que a transposição destas práticas para Cabo Verde enfrenta barreiras culturais.
“O que falta é uma cultura de valorizar esse trabalho”, afirmou Duarte, defendendo que a solução passa por seguir metodologias já estabelecidas internacionalmente para chegar a investigação útil que possa ser apropriada pelas empresas.
Competências comportamentais superam domínio técnico
Numa área em constante mutação, Joelma Tavares defende que as chamadas “power skills” são mais importantes que o domínio técnico propriamente dito. “Para mim o mais importante são as competências. Entre estas competências incluem-se a capacidade de aprender continuamente, de colaboração, de trabalhar em equipa e de inovação”, afirmou a CEO.
Esta abordagem reflete a consciência de que, num setor onde as tecnologias se renovam constantemente, a capacidade de adaptação e aprendizagem contínua vale mais do que o conhecimento de uma ferramenta específica que poderá estar obsoleta em poucos anos.
Apenas cinco mulheres em 40 formandos evidencia a desigualdade de género no ramo digital em Cabo Verde
Os números apresentados por Joelma Tavares revelam a persistência da desigualdade de género no setor tecnológico cabo-verdiano. A Labanta Academia iniciou recentemente duas ações de formação no Training Center do Parque Tecnológico com cerca de 40 formandos, dos quais apenas cinco são do sexo feminino.
“A tendência continua. Teremos que sensibilizar para a participação de mais meninas”, reconheceu a CEO, evidenciando que o desafio da inclusão de género permanece como uma das questões estruturais a resolver no desenvolvimento do setor tecnológico nacional.
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