O Primeiro Ministro, Ulisses Correia e Silva, anunciou durante a abertura da Trade Fair da 11ª edição do Atlatic Music Expo (AME), patente na Praça Alexandre Albuquerque, no Plateau, que, brevemente, levará ao Parlamento uma proposta de aprovação do Estatuto do Artista. Mas irão os artistas aderir a esta iniciativa? Até abril do ano passado, não havia consenso nem entre os próprios artistas, nem entre estes e as entidades ligadas ao processo de formalização do setor.
Por: Teresa Sofia Fortes/Renibly Monteiro
“O Estatuto vai criar um conjunto de condições para que o trabalho dos artistas seja uma atividade profissional, com direitos e garantias, nomeadamente a possibilidade de acesso à segurança social, o que é importante, e começar a conceber a indústria da cultura”, afirmou o chefe do Governo. Mas, a formalização do setor artístico tem se revelado uma tarefa difícil, com os artistas e Governo aparentemente ainda em páginas diferentes.
No ano passado, também por ocasião do AME, com o intuito de dissipar dúvidas e construir um modelo consensual, o Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas e Ministério das Finanças e do Fomento Empresarial reuniram-se com os músicos e outros artistas. Vandreia Monteiro, diretora das Artes e das Indústrias Criativas confessou na altura que enfrenta dificuldades para pagar à maioria dos artistas que contrata porque estes não estão formalizados: não estão inscritos no INSP, nem no Ministério das Finanças na condição de artista e muito menos emitem fatura eletrónica.
Conforme a DNAIA, 80% dos artistas cujos projetos foram financiados pelo Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas no último edital não estão formalizados, sendo a maioria cantores e instrumentistas. A classe com maior formalização são os artesãos.
Mas, a Dulce Sequeira, afirmou ao então jornal Fogo Business (agora Voz do Archipelago) , à margem do encontro, que tem enfrentado “muitos embaraços” para formalizar a sua situação sobretudo devido a falta de informação da parte das autoridades. “Deviam criar gabinetes ou balcões de atendimento aos artistas, pois precisamos de informações diretamente da ´fonte ‘principalmente para nos auxiliar a fazer o cadastro”, afirma Dulce Sequeira, para quem os custos da formalização são também uma barreira. “As despesas fiscais podem condicionar a sustentabilidade económica do artista”, alegou na época.
Nany Vaz, cantora, disse, por sua vez que não se opõe à formalização do setor das artes, mas apresentou reservas acerca da contribuição para a segurança social. A artista questionou se os artistas que também trabalham por conta de outrem terão de contribuir duas vezes, mas também mostrou preocupação relativamente aos colegas que vivem apenas da arte, nomeadamente os cantores e instrumentistas que fazem noites cabo-verdianas porque “a maioria tem um rendimento inconstante e insuficiente para custear as suas despesas pessoais e familiares”.
O instrumentista mindelense Diego Gomes afirmou na ocasião que “há vantagens na formalização do setor artístico, dado que passa a contribuir para o desenvolvimento da cultura, da economia, da sustentabilidade pessoal do artista e da classe”. São vantagens que, na sua opinião, com o tempo toda a classe perceberá. As dúvidas e resistências fazem parte do processo, mas “´só quem fizer parte conhecerá os impactos positivos da formalização”, concluiu o músico.
A disparidade de opiniões sobre a formalização do setor artístico está, de certa forma, refletida no relatório DOING BUSINESS 2013 (Banco Mundial) sobre os Regulamentos Inteligentes para Pequenas e Médias Empresas, apresentado pelo Ministério das Finanças e Fomento Empresarial durante a conversa aberta. Segundo este relatório, o sector formal, à semelhança do informal, apresenta limitações, sendo uma delas o tempo que os empresários podem gastar tentando descobrir aonde ir e quais os documentos que devem apresentar. Por outro lado, podem deliberadamente deixar de cumprir as normas, não se inscrevendo na previdência social, por exemplo.
Ainda de acordo como o mesmo relatório, em 2013 os níveis de informalidade tiveram uma tendência crescente em comparação com o setor formal. As empresas do setor informal geralmente crescem num ritmo mais lento, têm menos acesso ao crédito e empregam menos trabalhadores e esses trabalhadores não são beneficiados.
Gustavo Moreira, do Centro dos Estudos Jurídicos Fiscais e Aduaneiros explicou durante a conversa aberta com os artistas que os principais fatores que antes condicionavam o sistema fiscal cabo-verdiana eram o acesso ao crédito, a incidência tributária, a burocracia governamental e a deficiente preparação dos recursos humanos.
Detetadas estas dificuldades, passou-se à criação do Regime Jurídico das Micro e Pequenas Empresas (REMP), que visa simplificar o funcionamento das empresas inseridas neste formato (nomeadamente as que são criadas pelos artistas), reduzir os custos de acesso e de contribuição tributária.
Estatuto do Artista implica pagamento de impostos e segurança social
O processo de formalização da classe artística tem vindo a ser socializado desde 2018, contudo, ainda suscita dúvidas nos fazedores da arte. Abraão Vicente, então ministro da Cultura e das Indústrias Criativas afirmou que “muitos artistas não aprenderam a lição durante a pandemia da covid-19 quanto à fragilidade da condição desta classe”, uma situação que, argumentou o governante, ficará resolvida com a formalização, pois esta “proporcionará aos artistas acesso a benefícios fiscais e previdenciários, além de facilitar o acesso a financiamento e oportunidades de crescimento”.
“Não há cultura e indústrias criativas sem a formalização do setor”, declarou na ocasião Abraão Vicente, acrescentando que o Estatuto do Artista permitirá ao artista formalizar e dar maior dignidade a todos os que trabalham no setor da cultura, pois prevê que os profissionais da arte podem ser contratados e remunerados como criadores e produtores de arte e da cultura só se estiverem devidamente inscritos. A finalidade é garantir o reconhecimento do exercício da atividade profissional, bem como o devido tratamento fiscal e contributivo.
Daí que o MCIC apelou na época à classe no sentido de aderir ao processo de formalização para que possa contribuir mais e melhor para o Produto Interno Bruto de Cabo Verde. Ademais, afirmou Vicente, reiterando o que havia declarado em janeiro do ano à Inforpress, “não há Estatuto do Artista sem um quadro jurídico e ligação ao sistema fiscal, nem sem pagamento de impostos e segurança social”.
MCIC aponta deveres e vantagens
O Diretor Nacional da Modernização do Estado, João da Cruz, reconheceu na época que a burocracia tem sido um obstáculo para muitos artistas no processo da sua formalização. No entanto, destacou também que o serviço de constituição de empresas REMP, disponível em todos os concelhos do país, busca simplificar e agilizar esse processo, oferecendo orientações e assistência aos artistas interessados em formalizar a sua atividade. “Esforços têm sido feitos para simplificar os processos de registro e constituição de empresas, com a implementação de serviços como a Casa do Cidadão e o REMP”, enfatizou Cruz.
O processo de certificação inicia-se no balcão de atendimento da Casa do Cidadão e nas câmaras municipais em todos os concelhos do país. Começa-se pelo registo do nome da empresa ou do artista, que deve pagar o valor de 600 escudos para fazer o certificado de admissibilidade de firma. Concluída esta fase, em que são fornecidas informações sobre o capital social e o ramo de atividade, a constituição é instantânea.
A partir desta etapa a Casa do Cidadão interage com a Direção Nacional das Receitas do Estado (DNRE) é gerado um número de identificação fiscal para a empresa, o enquadramento é automático. A seguir, o artista pode dar inicio à sua adesão à segurança social (INPS ou um dos sistemas de segurança social privados).
Inscrição e enquadramento no INSP
A inscrição no INPS assegura aos trabalhadores e seus familiares, assistência nas situações de perda ou redução da capacidade de trabalho, nomeadamente nos casos de doença, maternidade, paternidade, invalidez, velhice ou morte, bem como fazer a compensação dos empasses familiares (abono familiar, cobertura medico-medicamentosa, entre outros).
Ora, de acordo com Ludmila Cardoso, Diretora de Contribuições do Instituto Nacional de Providência Social, o número de artistas inscritos no INSP está muito aquém do desejado, daí que esta entidade pretende apostar no alargamento da proteção social junto desta classe, podendo o enquadramento ser feito de duas formas.
Uma dessas formas é o Regime de Proteção Social dos Trabalhadores por conta própria, que presume que a atividade é exercida sem subordinação, ou seja, de forma independente. Para a inscrição no INPS basta preencher o formulário de inscrição, apresentar o número de identificação fiscal e um documento comprovativo do exercício de atividade. Feita a inscrição da empresa, começam as obrigações contributivas, que são deduzidas mensalmente.
O INPS dispõe de uma tabela que contém remunerações convencionais desde 15.000 escudos (salário mínimo nacional), que vão aumentando gradualmente, podendo os artistas optar pela modalidade que mais se adequa aos seus rendimentos. Inscrito o artista, este poderá a seguir inscrever os familiares que dele dependem economicamente (filhos, pais). Assistência médico-medicamentosa e hospitalar, maternidade, paternidade, pensão de velhice, sobrevivência ou invalidez são alguns dos benefícios que tanto os artistas como os seus dependentes passam a dispor.
Os desafios da autofaturação
A Fatura Eletrónica (e-Fatura) é uma das exigências do novo sistema fiscal e um dos recursos disponíveis aos artistas. Ou seja, por meio do e-Fatura podem fazer a autofaturação (Portaria nº 56/2023, de 29 de dezembro).
O sistema de autofaturação consiste num processo, segundo o qual o cliente substitui os seus fornecedores, na emissão de faturas referentes à aquisição de bens ou serviços. Apesar de ser elaborada pelo próprio adquirente, ela funciona como se fosse o transmitente dos bens ou o prestador dos serviços a fazer a sua emissão.
A validade jurídica deste documento é garantida pela assinatura digital do emissor e pela autorização de uso concedida pela Administração Tributária em tempo real. Trata-se de um documento que, como o nome indica, existe apenas no formato digital, logo é emitido, arquivado e conservado eletronicamente.
No entanto, afirmou Liza Helena Vaz, Diretora Nacional das Receitas do Estado, na sua intervenção na conversa aberta, embora a autofacturação seja um instrumento auxiliar que permite que as pessoas que têm mais dificuldade não fiquem de fora das contribuições fiscais, “os artistas não querem saber das questões fiscais e burocráticas, mas estas fazem parte do processo”.
Aquisição de crédito via Pró Empresa
O Presidente da Pró Empresa, Edney Cabral revelou durante a conversa aberta que esta instituição dá suporte às micro e pequenas empresas no acesso a crédito bancário, prestando toda a assistência técnica necessário. Porém, avisa, tal assistência só é prestada às empresas já formalizadas.
Neste momento, a Pró Empresa está a finalizar uma plataforma, que entrará em funcionamento ainda neste mês, e que permitirá que entidades empresariais solicitem financiamento e que integra um programa exclusivo para artistas. O objetivo é fomentar a indústria criativa e envolver os artistas que estão dispostos a formalizar as suas empresas, com garantias de até 100% ao banco para a concessão de crédito.
A formalização do sector artístico em Cabo Verde é um tema complexo que envolve diferentes perspetivas e desafios. Enquanto o governo busca promover a formalização como meio de garantir segurança e dignidade aos artistas, estes enfrentam obstáculos burocráticos e financeiros. No entanto, com esforços conjuntos entre governo, artistas e especialistas, é possível encontrar soluções que promovam um ambiente mais favorável à sustentabilidade artística e ao desenvolvimento cultural do país.
Diante desse panorama, o sistema REMP foi criado para simplificar processos e reduzir custos de acesso, buscando promover a formalização e aumentar a arrecadação de contribuições para o INPS. Embora haja avanços, é necessário um esforço contínuo para superar os desafios e garantir que o setor artístico em Cabo Verde alcance sua plena sustentabilidade, proporcionando dignidade e oportunidades para todos os seus trabalhadores.
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