Quarta-feira, 09 Julho 2025

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Três homens. Três destinos. Uma obsessão: Cabo Verde livre e desenvolvido

Meio século depois da independência, em jeito de “ajuste de contas com a memória”, há alguns dias, na cidade da Praia, Pedro Pires, Carlos Veiga e Jorge Carlos Fonseca reuniram-se em uma conferência denominada “O Progresso de Cabo Verde, 50 anos após a Independência – Diálogos literários antes e depois da independência”, no âmbito das celebrações dos 50 anos da independência do país. Entre revelações sobre o papel determinante de Amílcar Cabral, memórias da resistência clandestina e o drama da oficialização do crioulo que ainda espera solução, a conferência transformou-se numa radiografia íntima do país.Três homens, três destinos entrelaçados pela mesma obsessão: libertar as ilhas do jugo português, num clima descontraído, quase que familiar, que oscilou entre o político e o pessoal, entre a história e histórias de vida.

Por: Renibly Monteiro

O Combatente da Liberdade da Pátria Pedro Pires, antigo primeiro-ministro e Presidente da República, recordou a fome de 1941, que marcou a sua infância. Por sua vez, Carlos Veiga, o primeiro chefe de Governo do multipartidarismo, confessou como a brutalidade da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), que atuava na repressão e no controle social, vigiaando a população e censurando a informação, o empurrou para o Direito. E Fonseca narrou na primeira pessoa a sua expulsão da universidade em Portugal e a prisão do irmão.

Pedro Pires, que governou o país entre 2001 e 2011, recorda como a propaganda colonial rotulava os independentistas.  “Do ponto de vista colonial, por volta dos anos 1945/1950, éramos terroristas, anticoloniais. Diziam que éramos agentes de Moscovo. Ao contrário, nós tínhamos um projeto próprio, éramos anticolonialistas e anti-imperialistas”, afirmou o Comandante Pedro Pires. O antigo presidente revelou ainda como a experiência pessoal forjou a sua consciência política e o fez acreditar que era preciso reformar a sociedade. 

“A minha consciência estava marcada pelas crises e pelas mortes que eu pude assistir. Vivi a tragédia da fome de 1941/1942. Tínhamos projetos políticos, mas tínhamos também queixas e reclamações a fazer contra a administração colonial”. 

Na mesma ótica, Carlos Veiga narra como a brutalidade da PIDE moldou (pela negativa) a sua vocação política e o fez despertar para a necessidade de lutar por aquilo que é correto, transformando a dor da opressão em luta pela causa comum. Veiga presenciou um episódio em que o pai o protegeu da arbitrariedade policial na hoje chamada Avenida Amílcar Cabral, que na altura era um “campo de futebol” (do outro lado da estrada funcionava o escritório da PIDE).

Carlos Veiga conta: “Eu decidi fazer o curso de Direito depois de ter presenciado uma situação em que um agente da PIDE se levantou contra o meu pai”.

Na época, descreve o antigo primeiro-ministro, a sociedade cabo-verdiana era como uma comunidade em que todos se conheciam e eram amigos, mas, com a chegada da PIDE ao país, a confiança deu lugar à desconfiança. Veiga confessa que, apesar de não ter “nenhuma base política”, participava em reuniões clandestinas do PAIGC: “Em minha casa fazíamos reuniões do PAIGC, porque era algo clandestino. Eu queria ajudar o meu país”.

O contributo da literatura para o despertar da consciência nacional

Jorge Carlos Fonseca viveu na pele a repressão política. Foi expulso do curso de Direito em Coimbra no último ano, sob pretexto disciplinar e assistiu à prisão do irmão e de amigos pela PIDE. “Assisti pessoalmente, em 1972, à prisão do Alexandre Ramos de Pina, na cidade da Praia, em plena praça Alexandre Albuquerque”, recorda. Foi em Coimbra, durante os estudos universitários que muitos jovens cabo-verdianos descobriram a sua identidade nacional.

Veiga recorda o impacto da leitura de “A Aventura Crioula”, de Manuel Ferreira, e do despertar do sentimento de pertença à Pátria. 

“Quando cheguei a Portugal, precisamente em Coimbra, tomei contacto com um livro de Manuel Ferreira que se chama A Aventura Crioula. Quando li esse livro pela primeira vez, despertou a minha consciência nacional. Entendi que, se Cabo Verde é diferente, também precisa e merece ser independente”, afirmou Veiga.

Jorge Carlos Fonseca relembra também a sua contribuição política e o contributo da literatura para a sua formação pessoal e nacional. Afirma que o ambiente familiar e escolar estimulou o seu interesse pelas letras. Filho de pai alfandegário, Fonseca beneficiava de uma pequena biblioteca em casa, onde havia livros de literatura cabo-verdiana, mas, também literatura portuguesa, brasileira, e ainda muita literatura traduzida. “Por isso, desde muito pequeno, lia muito. No liceu, tinha um grupo de alunos mais velhos que me estimulavam a ler. Um deles, por exemplo, Mascarenhas Monteiro, estimulava-me a ler Baltasar Lopes da Silva, Jorge Barbosa, e apresentavam-me literatura que tem a ver com o nosso país”, lembra Fonseca. 

No que se refere à sua contribuição política, Fonseca conta que chegou a Coimbra com apenas 16 anos, e integrou uma célula do Partido Africano da Independência de Guiné e Cabo Verde (PAIGC) aos 18. Encontrou lá alguns africanos, entre eles guineenses, angolanos e cabo-verdianos. Estes o mobilizaram para integrar a estrutura do PAIGC na clandestinidade. Para Fonseca, as células do PAIGC eram espaços de formação política. “Nas estruturas, líamos boletins do PAIGC sobre as notícias de luta, sobre a reforma agrária na Argélia, os movimentos de libertação da Guiné, e discutíamos isso nas células, nas reuniões mais alargadas”.

Aos 24 anos, Fonseca regressou a Cabo Verde com responsabilidades importantes, ocupou o cargo de Diretor Geral da Emigração e Serviços Consulares. Apesar do fervor revolucionário, tinha dúvidas práticas sobre a independência. Como suportar as despesas e os custas da tão sonhada independência.  Segundo Fonseca, essa era uma preocupação de todos, e a resistência popular à independência também existia. “As pessoas também tinham resistência a essa independência, sobretudo pelas nossas condições climáticas. Não chovia muito, não tínhamos condições”, enfatizou.

A figura de Amílcar Cabral como líder

Pedro Pires, que manteve uma relação próxima com Amílcar Cabral, pinta um retrato íntimo do líder independentista.  Pires descreve Cabral como um espírito inconformado, curioso, que queria sempre conhecer melhor as pessoas. “Eu admirava e admiro mais ainda Amílcar Cabral pela sua generosidade. Do ponto de vista material e intelectual ele estava bem, mas trazia consigo uma outra preocupação que era a militância política a favor da independência do nosso país e das outras colónias portuguesas”.

Carlos Veiga, que nunca conheceu pessoalmente Cabral, descreveu o impacto da sua figura: “Eu beneficiei dessas andanças. Mas mesmo no liceu, todos ouviam falar de Cabral e todos valorizavam Cabral. Era quase que um mito. A morte de Cabral foi muito sentida aqui em Cabo Verde”. Jorge Carlos Fonseca ofereceu uma análise mais distanciada. “Eu não tive o privilégio de conhecer pessoalmente Amílcar Cabral. Portanto, o conhecimento que eu tenho de Cabral é sobre o percurso dele e, sobretudo, dos seus escritos”, reiterou. Qualifica como um “irrealismo enorme” não reconhecer o papel de Cabral como mentor da libertação nacional.

Oficialização do Crioulo, uma questão por resolver

Meio século após a independência, a oficialização do crioulo permanece um desafio. Pedro Pires foi categórico: “Ter língua própria é um elemento fundamental da identidade. A maior forma de dominar um povo é através da língua”. O antigo presidente criticou a “falta de vontade política e audácia” e o fato de não se ter descolonizado a toponímia das cidades. “Nós não podemos ficar nessa confusão de “nem carne, nem peixe”, defendeu.

Por seu turno, Carlos Veiga atribuiu o impasse à falta de união política: “Nesses últimos tempos, nós temos sido incapazes de acordar os partidos políticos em qualquer coisa que seja. Vamos esquecer essa coisa de Sotavento e Barlavento”. Já Jorge Carlos Fonseca advogou uma abordagem bilateral: “Devemos caminhar para o bilinguismo. Qualquer atividade de promoção do crioulo não pode ser feita em contraposição com a língua portuguesa, o Governo deve ouvir os especialistas, os escritores, a sociedade cabo-verdiana”.

Cabo Verde, uma nação com um legado em construção

A conferência revelou que, 50 anos depois, Cabo Verde continua a construir a sua identidade nacional. Entre as conquistas da independência e os desafios do presente, os três antigos presidentes e primeiro-ministro deixaram uma mensagem comum: a necessidade de ultrapassar divisões políticas para consolidar os símbolos e valores que definem a nação cabo-verdiana.

Numa altura em que o país celebra meio século de soberania, as palavras destes três líderes ecoam como um apelo à unidade nacional e à valorização da cultura crioula, numa síntese entre passado e futuro que continua a definir o destino das ilhas atlânticas que respiram cultura, identidade, resiliência.

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