Sábado, 19 Abril 2025

Grande Entrevista

“Estamos a assistir ao desmantelamento da ordem económica mundial”

Agnelo Sanches: “Estamos a assistir a uma perturbação da ordem económica mundial”

Em entrevista exclusiva ao Voz do Archipelago, o economista Agnelo Sanches traça um retrato preocupante do cenário económico mundial, marcado pela guerra comercial entre os Estados Unidos e a China. Segundo o especialista, esta confrontação entre as duas maiores potências ameaça não só o comércio internacional, como também fragiliza os mecanismos de governabilidade global, podendo desencadear uma recessão económica com impactos severos nos países em desenvolvimento — incluindo Cabo Verde.

Por: Renibly Monteiro 

Voz do Archipelago- Como descreveria o estado atual da economia mundial, desde que o presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, iniciou a “ guerra” das taxas alfandegárias contra o mundo inteiro?

Agnelo Sanches – Precisamos ter em conta que estamos perante as duas primeiras economias mundiais, entre as quais existem relações comerciais intensivas e trocas que representam, em termos globais, à volta de 24% do comércio mundial. Estamos a falar de dois pesos pesados na economia mundial, em que o bloqueio comercial entre as duas potências, ou uma guerra comercial que implica aumentos de tarifários em matéria de comércio, coloca o mundo perante uma situação de bloqueio comercial. A Organização Mundial do Comércio (OMC), prima pela eliminação de barreiras comerciais e pela segurança e garantia de trocas livres entre os Estados. De modo que esta guerra comercial põe em causa todas as regras desta Organização. E relembramos que esta é uma política esperada do atual presidente dos Estados Unidos, que teria iniciado isso também no primeiro mandato, em 2018/2019, numa guerra frontal comercial contra a China. E não é de agora que os Estados Unidos têm posto em causa os regimes de governabilidade global criados na pós-segunda guerra mundial. A própria liberalização do comércio nasce com toda a iniciativa pós-segunda guerra, com a criação de instituições de governabilidade global, desde as financeiras até as comerciais, como o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) e a criação da OMC em 1995. Esta guerra comercial põe em causa toda a dinâmica comercial e pode conduzir perturbações no comércio internacional, bem como, poderá conduzir a uma recessão económica, com consequências a nível do crescimento dos países em desenvolvimento. Estes comportamentos podem provocar algumas incertezas nos investimentos dos agentes comerciais.  As grandes empresas, as grandes multinacionais, estão agora perante situações de poderem previsivelmente prescindirem de investimentos que pretendiam fazer. Não se pode esperar com essas incertezas, o crescimento que tinhamos previsto anteriormente. Torna-se muito difícil a previsão económica global, em termos das linhas reais de consequência dessa guerra comercial.

Que consequências essas tarifas podem provocar nos países em desenvolvimento, nomeadamente países africanos e, em particular, Cabo Verde?

Para os países importadores, que não são os mais ativos no comércio com os Estados Unidos, haverá sempre consequência em matéria daquilo que seria efeitos de uma recessão, mas também efeitos a nível de preços, pois, a inflação mundial pode isso provocar. E haverá consequências imprevisíveis a nível de várias formas das relações económicas internacionais, não só no comércio, mas também a nível das moedas, da evolução cambial, o valor do dólar estará suscetível a oscilação. Toda a economia mundial e os países em desenvolvimento sofrerão por essa via de transmissão dos mecanismos de formação de preço, da inflação, mas também de paridade monetária, que tem a ver com as oscilações cambiais. Se houver uma recessão económica, as consequências serão graves também para as economias em desenvolvimento, que sofrerão também em matéria de crescimento e desenvolvimento.

O que pode Cabo Verde fazer para minimizar as consequências?

O governo deve apoiar as grandes empresas nos setores chaves dos combustíveis, a estarem preparados para eventuais evoluções a nível do mercado. Deve haver uma estratégia nacional no mecanismo de compras para antecipar eventuais oscilações de preços. Cabo Verde é um país com pouca expressão a nível do comércio internacional. Tendo em conta a estrutura do comercio externo de Cabo Verde, os Estados Unidos não é um parceiro importante para o nosso país. Cabo Verde importa 90% da União Europeia, mas é pela via dessa importação que poderá haver efeito negativo na economia cabo-verdeana, por causa da evolução dos preços e também dos mecanismos que levarão certamente a alterações a nível de vários parâmetros da economia, nomeadamente a política a nível de valor, da paridade cambial, euro, dólar. O escudo de Cabo Verde está ancorado ao euro, as consequências poderão vir das oscilações cambiais. Mas haverá também outros elementos a ter em conta que têm a ver com tudo o que é imprevisível a nível dessas decisões e o país pode atuar na perspetiva também de uma eventual antecipação pela via da utilização de mecanismos do mercado de aquisição de bens que precisará. Por exemplo, um país dependente da importação importa quase tudo, sobretudo os combustíveis. Por causa de uma perspectiva de evolução de preços, o país pode precaver-se pela via de compras através do mecanismo de Futuros (compras antecipadas). E as empresas que fazem esse negócio já sabem como se proteger, mas o país também deve ter o mecanismo de apoiar as grandes empresas nessa matéria.

Em Cabo Verde, quem serão os mais afetados pela aplicação dessas taxas?

A  guerra entre as duas grandes potências, leva certamente a recessão, alteração de preços a nível mundial, nova configuração, e terá influência nas economias africanas e nas pequenas economias também, de modo que as consequências serão a nível da importação de preços. A liberação do comércio mundial conduz de facto a uma dinâmica comercial e a flexibilização de preços e movimento de bens. Mas quando há um bloqueio tarifário, leva sempre a aumento de preços. Em termos da nossa importação da China, ela continuará numa perspectiva comercial bilateral e não haverá grandes alterações. O país é um setor passivo, ele não será nunca um operador ativo do mercado, porque não tem nem dinâmica comercial, e não tem exportação para os EUA. Nessa perspectiva, a consequência tem a ver com os preços desses produtos que teriam alterações substanciais por causa dessa guerra comercial, que provocará desinvestimentos e aumento de preços dos produtos. Neste momento, há muitas empresas que já decidiram não investir ou não avançar com investimentos previstos para o correndo ano, face às incertezas do mercado. Isso provoca, certamente, uma recessão.

Não há neste processo, da parte de Cabo Verde, nenhum poder de reciprocidade, ou seja, também aplicar taxas sobre produtos norte-americanos?

Diretamente, Cabo Verde não pode fazer parte dessa guerra comercial. Cabo Verde é um beneficiário passivo das consequências, porque não tem nem dinâmica comercial, nem tem peso, e nem tem interesse em estar nessa guerra.

A seu ver, qual é o motivo desta guerra comercial?

Há uma guerra comercial ditada pelo ímpeto da hegemonia norte-americana. E isso vê-se, porque é uma confrontação entre os Estados Unidos e a China, e Cabo Verde nada pode fazer. É uma guerra das grandes potências. É a guerra dos Estados Unidos/China, que coloca a economia mundial perante uma situação de desordem, porque coloca toda a economia numa situação de imprevisibilidade. Então, o que se pretende com essa iniciativa, se calhar, é tentar uma política de contrariar a China, cuja dinâmica comercial tem sido imparável, tornando-se uma das primeiras potências mundiais e a primeira potência comercial mundial. Os Estados Unidos procuram aliviar o déficite comercial com a China, particularmente, pela via tarifária. Mas também aplicou taxas ainda que inferiores a parceiros comerciais como o Brasil, a União Europeia, e o México. As guerras comerciais poderão estender-se a esses países confrontos. Desses confrontos é que saem as consequências, quer da recessão previsível, quer da contração do comércio mundial e da evolução dos preços nos mercados e do próprio desenvolvimento do mercado.  Neste momento estão sendo postas em causa as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), que foram também promovidas, todas essas regras pelo mesmo partido que está no poder nos Estados Unidos. Nós estamos perante uma desordem, porque toda a ordem económica mundial foi estabelecida com a criação de instituições de regulação, mas também de acompanhamento, como a OMC.

A Administração Trump decidiu esta semana suspender a aplicação das tarigas por um período de 90 dias, exceto no caso da China, fazendo escalar ainda mais a guerra comercial entre os EUA e a China. Que impacto esta guerra tem ou terá no comércio global?

Isso traz a evidência de que a guerra declarada é primeiramente contra a China, porque a dinâmica chinesa no comércio mundial incomoda os Estados Unidos. Mas a China já tem um poder de mercado enorme a nível da economia mundial, sendo também um dos credores dos Estados Unidos. Não é somente o parceiro comercial, mas muita dívida dos Estados Unidos é detida pela China. Isso pode provocar uma queda no mercado cambial. Isso pode provocar uma queda no mercado cambial. Essa guerra tem colocado os principais mercados de capitais, numa zona de estresse. As bolsas asiáticas estiveram em alta, por acaso, antes de ontem, mas há sempre o mercado bolsista dos Estados Unidos a cair. Se analisarmos a evolução de vários mercados de capitais, podemos ver que há um forte risco de recessão económica, segundo o indicador do mercado de capitais.

Na sua opinião, como é que outros países têm reagido às tarifas norte-americanas?

Os países de pequena dimensão, mas que dependem muito da evolução de preços e dos mercados da China ou dos Estados Unidos, dos grandes mercados, já estão a propor medidas de proteção e de investimento na competitividade das empresas. O caso de Portugal, que ontem tomou medidas de apoio, com verbas concretas de apoio às empresas. Os países que estão mais integrados na economia mundial procuram agora investimento na competitividade das respetivas empresas. São países que, de facto, têm uma dinâmica comercial mundial, não é o caso de Cabo Verde, mas mesmo Cabo Verde terá necessidade de acompanhamento e de investimento na proteção do mercado. Os países da União Europeia estão, neste momento, a trabalhar na competitividade das empresas, mas também estão a preparar para uma eventual tomada de posição em relação às tarifas, porque não vão ficar de braços cruzados. Neste momento não há uma declaração de guerra da União Europeia em relação aos Estados Unidos, há uma atuação passiva colaborativa, no sentido de esperar para ver, e por isso que houve essa trégua de 90 dias, e espera-se haver negociações. Não havendo, vamos caminhar pelas guerras comerciais, que tomarão dimensões várias, e os países terão que investir no sentido de proteger os mercados. O que pode conduzir ao protecionismo, em vez da liberalização comercial.

Houve uma tentativa de criar novos acordos comerciais ou zonas de livre comércio?

Isso pode vir a acontecer, e a economia mundial, mesmo num quadro liberal, tem sido uma economia de blocos, de zonas de comércio livre, como estamos também a desenvolver em África, a zona de livre comércio continental africano. Há uma dinâmica de globalização, que decorre num quadro de regionalização das economias de blocos regionais. E não tem tido perturbação, pelo contrário, tem contribuído para uma certa dinâmica. Mas quando há iniciativa de uma grande potência, como os Estados Unidos, de impor tarifas às importações dos restantes parceiros, pode haver a reciprocidade da retaliação. Face ao aumento das tarifas pelos Estados Unidos, a  China respondeu da mesma maneira, estando todos a nível das tarifas a 125%.  A União Europeia está à espera de uma melhor solução, mas a perspectiva é a guerra de blocos.

A Europa tem seguido uma linha diferente dos EUA nesse aspeto. Concorda que há uma nova geopolítica económica em construção?

Neste momento, o que podemos dizer é que nós estamos perante uma desordem económica, e não sabemos qual será a ordem. A Europa continua sendo um parceiro dos EUA que se submete, e isso a enfraquece. Nós tínhamos até agora, ou pelo menos há uns anos, um regime de governabilidade global que a nível do comércio mundial vinha funcionando, sob a “guarda-chuva” da Organização Mundial do Comércio, que agora é posta em causa. A ordem seria de poder de mercado, quem pode, mais. Agora há uma certa imprevisibilidade, mas estamos perante uma situação de nascimento de uma nova “desordem” daquilo que seria a economia mundial. A Europa está perante uma situação muito delicada de poder se fragilizar face às estratégias de confrontação. Quando a China e os EUA evoluem, a Europa que acreditavamos ser um bloco de afirmação, está em crise, e está numa posição menos favorável do que a China e os EUA.

Que impacto essas políticas podem ter no crescimento económico mundial nos próximos anos?

A longo prazo, vai continuar esta prespetiva de incerteza e stress a nível do comércio mundial. Sendo o comercio a principal e a mais dinamica forma de relações económicas internacionais, a OMC prevê uma recessão económica mundial muito significativa. Caso isso vier a acontecer, a consequencia será para todos e haverá o efeito dominó nas economias em desenvolvimento, sobretudo, bem como, nos grandes mercados.

Acredita que os EUA continuarão a apostar em políticas protecionistas, mesmo com outras lideranças?

Os Estados Unidos têm uma perspetiva hegemónica. O embate mais visivelmente tem sido entre os Estados Unidos e a China, porque com a União Europeia há uma perspetiva de negociação. Com outros países há inclusive uma pausa de 90 dias, por isso o alvo é a economia concorrente, a China. A tentativa é de poder contrapor a dinâmica económica e comercial da China. Mas o poder chinês, a nível da economia mundial, assume uma dimensão multifacetada e tem uma estrutura de comércio internacional bastante diversificada. A China hoje domina o comércio mundial com presença na Europa, na Ásia e nas Américas, e  tem desenvolvido parcerias importantes. Igualmente, tem tido uma perspetiva de consolidação. E não vejo que os Estados Unidos conseguirão desmantelar toda esta dinâmica chinesa. Porque a China tem construído esta dinâmica na base de uma geostratégia bem concebida e que está sendo desenvolvida com os parceiros internacionais. A própria política externa chinesa, baseia-se na conquista de parcerias pela via do respeito pelo princípio da grande China, a China única, mas em que os parceiros se alinham naquilo que é a estratégia chinesa. Esta potencia comercial tem constituído alianças ao longo dos tempos. Os Estados Unidos têm fortes parcerias com a União Europeia, mas a China também tem estabelecido fortes laços comerciais e de parcerias com a União Europeia.

Além desta guerra de taxas alfandegárias, quais são, na sua opinião, os principais fatores que estão a moldar o cenário económico global em 2025?

Nós temos os conflitos mundiais, desde as guerras Rússia/Ucrânia, mas também das guerras no médio oriente, os conflitos no continente africano, e temos o fator climático,que condiciona fortemente a economia mundial. Esses são os fatores-chaves que têm condicionado a economia mundial, mas, a guerra comercial de agora,  traz um conjunto de incertezas e imprevisibilidades, de modo que temos que reanalisar e ver quais serão as consequências.

Na sua visão, que caminhos devem ser tomados para promover uma economia global mais estável e justa?

É seguir o caminho daquilo que definimos ao longo do século, que é a criação de mecanismos de garantia de uma governabilidade global sólida, em que haverá toda a salvaguarda de um comércio mundial livre de protecionismos  nacionais, e estável. Além de um mercado de capitais que funcione de forma transparente, e que financia o desenvolvimento mundial, tendo como referencia a perspetiva que criamos à volta dos objetivos das Nações Unidas. Isto para que haja uma economia estável. Para que a economia mundial prossiga o ritmo normal, tem que haver um desenvolvimento sustentável, não podemos conviver com situações de fome, miséria, e desequilíbrios a nível social e ambiental. Nesta ótica, deve haver regimes de governabilidade para garantir uma ação climática de combate ao aquecimento do planeta, tem que haver uma perspetiva de governabilidade global de combate à fome e à miséria global, bem como, uma governabilidade global, que garante a transparência, a estabilidade e o livre comércio mundial. Teríamos que garantir todos esses eixos da governabilidade global em todas as esferas para haver um desenvolvimento mundial saudável. Esta é a ordem mundial que nós desenvolvemos no pós-segunda guerra e que está posta em causa. Se estamos a por em causa essas regras da governabilidade global, podemos estar a pôr em causa toda a perspetiva de desenvolvimento mundial.

 

 

 

 

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