Sábado, 19 Abril 2025

Grande Entrevista

“A maior dificuldade que os psicólogos enfrentam tem a ver com o seu reconhecimento como profissionais úteis à sociedade”

Daniel Lopes, primeiro Bastonário da OPCV

Os psicólogos de Cabo Verde celebram esta semana o seu dia. Daniel Lopes, o Bastonário da Ordem dos Psicólogos de Cabo Verde (OPCV) diz em entrevista ao nosso jornal que a classe precisa com urgência de um código deontológico e de uma cédula profissional, mas, admite também que o principal desafios que os psicólogos ainda enfrentam no nosso país é o seu reconhecimento como especialistas úteis à sociedade. 

Por: Renibly Monteiro 

Foi eleito Bastonário da Ordem dos Psicólogos, o primeiro da história da agremiação, há seis meses. O que motivou a sua candidatura?

A minha candidatura foi motivada, primeiramente, pelo desejo de poder fazer algo de bom em prol dos psicólogos e da ciência psicológica em Cabo Verde. Por outro lado, fui motivado por colegas que viram em mim uma pessoa que reúne algumas condições de caráter técnico e humano que coadunam com a figura de bastonário. Ver que colegas acreditam em ti e te incentivam a seguir um determinado caminho é estimulante e, ao mesmo tempo, desafiador. Assim, decidi seguir em frente e enfrentar os desafios.

Como decorreu o processo da sua eleição?

O processo foi cansativo devido ao pouco tempo que tínhamos para fazer tudo. Mobilizar o pessoal não foi fácil, devido à nossa condição arquipelágica. Se bem que as novas tecnologias de comunicação ajudaram muito. Houve também alguma resistência das pessoas que pensam que não vale a pena lutar porque há muita indisciplina no exercício da profissão e que a situação já chegou a um ponto em que não se pode fazer nada. Felizmente, a maioria pensa o contrário, que é preciso, sim, lutar. Concordei com a opinião da maioria e decidi seguir em frente e levar o processo de eleições até ao fim, e foi com determinação e espírito positivo que o fiz.

Que projetos quer implementar durante o seu mandato, a curto, médio e longo prazo?

A curto prazo pretendo, juntamente com a minha equipa, criar o código deontológico que irá nortear a atuação dos psicólogos em Cabo Verde e o tratamento da ciência psicológica. É uma prioridade porque precisa-se de disciplina no exercício da profissão. Posteriormente, queremos criar a Cédula do Psicólogo, que será um documento de identificação profissional no dia-a-dia. A cédula, obviamente, indicará qual é a área de formação e especializações, para que o psicólogo possa atuar sem restrição na área em que se formou ou especializou. Pretendemos também apostar na formação contínua dos psicólogos, na especialização e subespecialização para atingirmos todas as necessidades de procura na área da psicologia e impedir que uma pessoa acumule várias vertentes e não possa dar uma resposta cabal ou dar continuidade a um tratamento clínico ou uma ação numa organização ou num contexto educativo.

O que é fundamental ou imprescindível que seja realizado?

É fundamental que todos os psicólogos estejam inscritos, paguem as suas quotas e exerçam o seu serviço, com responsabilidade, primando sempre pela ética, profissionalismo e pela competência.

Qual é a importância da criação da Ordem dos Psicólogos para os profissionais da área e para a sociedade cabo-verdiana?

A criação da OPCV era uma necessidade que se fazia sentir há muito. Foi criada em 2021, através do BO nº 46 I Série, de 5 de maio, criou-se uma comissão instaladora, mas três anos se passaram e só agora se conseguiu fazer as eleições. Os psicólogos estavam ávidos por ter esta organização de pé, eu percebi isso quando estava a mobilizar o pessoal, isto também me motivou muito.

Quais são os benefícios que a OPCV poderá trazer para a regulamentação e o fortalecimento da psicologia em Cabo Verde?

Os benefícios são muitos, desde a regulamentação do exercício da profissão até a prestação de um serviço de qualidade e com bons resultados.

Existe algum projeto específico que será focado na promoção da saúde mental nas comunidades?

Ainda não elaboramos nenhum projeto específico. Temos as linhas estratégicas de ação que foram apresentadas na candidatura e, agora que tomei posse, irei convocar uma reunião com a equipa e definiremos os passos, o programa de ação, entre outras ações necessárias. E, com certeza, iremos montar e desenvolver projetos a nível comunitário e em outros níveis.

Como a OPCV pode contribuir para garantir qualidade aos serviços de psicologia em todo o país?

Inicialmente, iremos pedir reuniões com diversos stakeholders no sentido de iniciar uma avaliação da situação. Um diagnóstico das necessidades de intervenção em diferentes domínios da ciência psicológica será feito. Ou seja, queremos primeiro saber qual é o estado da arte da psicologia em Cabo Verde. Ações virão depois com planeamento e execução responsáveis. Com isso estaremos em condições de garantir a qualidade dos serviços prestados.

O Governo estabeleceu o ano 2024 como o ano da saúde mental. Como classifica esta iniciativa governamental?

Foi uma iniciativa louvável que despoletou toda uma movimentação à volta da problemática da saúde mental. Várias atividades foram desenvolvidas no decurso deste ano, uns por iniciativa do Ministério da Saúde, outros do Instituto Nacional da Saúde Pública e de outras instituições, tando do setor público como do setor privado, e que acabaram por trazer à ribalta o debate sobre a saúde mental, que estava um bocado sonegado. E é preciso que se fale sobre a saúde mental, seja nas instâncias da saúde, seja nas organizações, no ensino, na justiça, nas comunidades.  Por conseguinte, penso que foi uma iniciativa louvável.

Estamos a dois meses de terminar 2024, que tipo de iniciativas gostaria de ver implementadas no quadro de 2024 – Ano da Saúde Mental antes de terminar o ano?

Iniciativas do tipo servem para mobilizar as pessoas à volta do fenómeno e fazer o cidadão comum entender que a saúde mental não é exclusivamente padecer de doença mental, é um tema que merece uma apreciação de várias ciências, porque vários fatores influenciam a saúde mental. Veja, ser humano é um todo físico, psíquico e social e existe uma interação que define para o bem ou para o mal a nossa mente, a nossa forma de pensar, de comportar e de agir perante uma sociedade dinâmica e exigente. Por isso todos somos chamados a dar a nossa contribuição para que haja qualidade de vida.

Como a OPCV pretende apoiar ou se envolver nessas iniciativas?

A OPCV tem como missão principal regulamentar, orientar e fiscalizar a atuação dos psicólogos no domínio da saúde mental. O nosso trabalho é com os psicólogos e com a ciência psicológica. Obviamente, os psicólogos são os principais agentes nesta problemática e terão que fazer parte ativa quando o assunto é saúde mental. Nós iremos apoiar qualquer iniciativa que visa melhorar questões de foro psicológico que afetam a sociedade cabo-verdiana. Também promoveremos ações da nossa iniciativa, visando o bem-estar psicológico dos cidadãos.

Quais são os principais problemas psicológicos enfrentados pela população cabo-verdiana atualmente?

Vivemos um mundo globalizado em que tudo o que acontece em qualquer lugar afeta a todos. A COVID foi a maior prova disso. Agora temos as guerras, os conflitos étnicos, as questões relativas a igualdade de género, às minorias e outras que fazem com que a vida aconteça a mil e que os desafios sejam constantes. Essas exigências conjunturais, e até estruturais, alteram o sistema cognitivo e emocional das pessoas. Isto traz um conjunto de problemas de foro psíquico e emocional. A ansiedade e a depressão são hoje “o pão-nosso-de-cada-dia” das sociedades e Cabo Verde não foge à regra. O transtorno de pânico, a síndrome de burnout nas organizações, os transtornos obsessivo-compulsivos são uma realidade e um dos resultados indesejáveis que estamos tendo é a alta taxa de suicídio num país tão pequeno como o nosso.

Há algum grupo específico ou faixa etária que é mais vulnerável a esses problemas?

Todos são afetados, sobretudo os adolescentes, que padecem de incertezas, de medos, de falta de norte em relação ao seu futuro, e a terceira idade, pessoas que ultrapassaram já os sessenta anos e que começam a sentir-se apreensivos, inquietos e impotentes diante dos conflitos por não saberem quando terão um fim. Esta indefinição das coisas, aliada aos fenómenos climáticos, a ausência de segurança pessoal e coletiva, fazem com as pessoas se sobressaltem constantemente e fiquem aterrorizadas por tudo e por nada. Daí a vulnerabilidade, principalmente das faixas etárias que referi.

Quais são as maiores dificuldades enfrentadas pelos psicólogos em Cabo Verde hoje?

A maior dificuldade que os psicólogos enfrentam hoje em dia tem a ver com o reconhecimento da profissão, dos psicólogos como cientistas da mente e do comportamento, profissionais úteis à sociedade, que merecem serem reconhecidos na sua dignidade e serem valorizados. É por isso que definimos como lema da nossa campanha a frase “Pela dignificação e valorização da classe dos psicólogos em Cabo Verde”. Eu pergunto: por que temos psicólogos em várias áreas cuja atuação profissional não se coaduna com o exercício da psicologia e com as competências que adquiriram na sua licenciatura? A resposta é simples: precisamente por não verem a sua profissão reconhecida e valorizada. Por outro lado, as autoridades competentes devem dar maior atenção às condições de trabalho do psicólogo. Estou a falar de condições ergonómicas, de condições ambientais e tecnológicas, de condições salariais, entre outras. Por sua vez, os psicólogos têm a responsabilidade de procurar a excelência na prestação do serviço aos utentes, qualquer que seja a sua área de atuação.

Quais mudanças são necessárias para melhorar as condições de trabalho e a qualidade dos serviços oferecidos pelos psicólogos?

Uma das primeiras mudanças que pensamos seria útil é a distribuição dos psicólogos, sobretudo na Administração Pública, de forma coerente com as especializações de cada um: os especialistas em Psicologia Organizacional, os clínicos nos hospitais, delegacias e centros de saúde, centros de recuperação de toxicodependentes, alcoólatras, entre outros, os psicólogos educacionais nas escolas e nos centros educativos, os psicólogos forenses nas instituições judiciárias, jurídicas ou policiais. Quando conseguirmos que cada um esteja no lugar certo e que as condições estejam criadas, pensamos que as coisas começarão a mudar para melhor.

Temos psicólogos em número suficiente em Cabo Verde nas estruturas de saúde? Se não, como colmatar esta falha?

Não, não temos. Psicólogos clínicos há muitos, mas não estão nas estruturas de saúde. Estão, sim, nas escolas, dando aulas, muitas vezes nem são professores de psicologia. Eu tive oportunidade de ver isso, in loco, quando eu estava mobilizando os psicólogos para as eleições da OPCV. Teremos que fazer um trabalho árduo junto das autoridades competentes no sentido de se fazer uma melhor distribuição. Todas as especialidades dentro da psicologia são importantes, mas é a psicologia clínica e da saúde que trata das doenças mentais.

Como estamos em termos de número de profissionais nesta área e qualidade do serviço prestado?

Não lhe sei dizer qual é o número de psicólogos clínicos e da saúde que temos em Cabo Verde. Temos um total de 193 psicólogos recenseados, se não me falha a memória, mas muitos mais existem aqui no país, nas diferentes áreas. Iremos abrir uma nova vaga de inscrições, até porque todos os psicólogos deverão, a partir de agora, inscrever-se na OPCV.  

Como espera que a OPCV contribua para a construção dessa visão ao longo dos próximos anos?

A nossa visão deverá ser abrangente e não deveremos dar primazia a uma ou outra especialidade. Todos serão abrangidos na mesma medida. Até porque, por exemplo, os psicólogos organizacionais têm que saber intervir em qualquer distúrbio de foro psicológico dentro das organizações. Da mesma forma, os psicólogos forenses irão deparar-se com pessoas com distúrbios psicológicos diversos e deverão saber intervir, ou, quando muito, saber diagnosticar e encaminhar a pessoa.

Qual é a sua visão, como Bastonário da Ordem dos Psicólogas, para o futuro da psicologia e da saúde mental em Cabo Verde?

Eu vejo a saúde mental como um problema holístico, que deve ser encarado de um ponto de vista multidisciplinar. Contudo, a orientação deve partir dos psicólogos. Estes têm que estar na frente quando se fala de saúde mental porque são eles que detêm as técnicas e os instrumentos de diagnóstico e intervenção na ciência psicológica. Os demais interventores serão coadjuvantes no processo. A mente humana não é brincadeira. É feita de componentes subjetivos, que não são comuns a todos os indivíduos. Cada pessoa é uma pessoa e é um caso à parte em termos da sua subjetividade, em termos cognitivos, afetivos e emocionais. Por isso tratar as questões mentais é de grande responsabilidade e não deve ser atribuído a qualquer um.

Para terminar, que mensagem gostaria de deixar aos psicólogos cabo-verdianos e à população em geral sobre a importância do cuidado com a sua saúde mental?

Aos psicólogos gostaria de deixar a seguinte mensagem: capacitem-se cada vez mais na área da vossa atuação, reciclem-se, procurem mais conhecimentos e primem pela excelência. Tenham em consideração que o homem, no seu sentido lato, é um ser complexo e merece toda a nossa atenção e competência no tratamento das sua mazelas psicológicas. Respeitem o paciente, respeitem a ética profissional e sejam agentes de mudança para uma melhor qualidade de vida de quem vos procura.

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