Há algo de trágico no destino do Criador quando ele se esquece que o que cria é ouro – não o ouro frio das minas, mas aquele que escorre quente das veias do Espírito.
A canção. O poema. O quadro. O passo de dança que rompe o chão. Tudo é grito. É prece. É legado.
Mas também é propriedade. É terra. É escritura.
E nós, os que criamos, quantas vezes assinámos sem ler?
Quantas vezes doamos sem saber que doávamos?
Quantas vezes choramos o roubo e chamamos de azar?
Na hora da criação, o artista é um canal. Não pensa. Transborda.
Naquela hora, Deus desce, toca-lhe a testa e sopra:
“Vai. Sê. Cria.”
E ele cria.
Mas depois, o mundo vem – com os seus contratos, algoritmos, métricas, percentagens.
E o que era divino, torna-se dado.
E o que era fogo, torna-se ficheiro.
E o que era vida, torna-se código.
Se uma canção fosse um apartamento, quantos de nós estaríamos hoje a dormir na rua?
Construímos palácios emocionais, catedrais de som e sentido, mas sem conhecer o terreno onde os erguemos.
E um dia, alguém nos diz: “Este espaço não é teu.”
E do chão onde nos ajoelhamos, somos expulsos.
Na era digital, o labirinto não tem paredes.
Mas tem mil portas com mil homens: strem upload, terms and conditions, click here to accept
E entramos.
E perdemo-nos.
E às vezes, nunca mais voltamos.
Agora chegou a Inteligência Artificial.
Uma nova divindade sem alma.
Capaz de criar sem nunca ter chorado.
Capaz de cantar sem nunca ter sonhado.
Ela não se cansa. Não hesita. Não sofre.
Ela simula o que sentimos, mas não sente o que simula.
E nós?
Criadores de carne e memórias.
De trauma e transcendência.
De infância e fé…
Estamos a ser substituídos por máquinas que não sabem o que é perder a mãe.
Ou o que é amar um país que não nos ama de volta.
A Propriedade Intelectual é o único terreno que ainda temos.
O único onde podemos plantar a bandeira do nosso sangue.
Mas para isso, temos de o reconhecer. De o conhecer.
Temos de o proteger com o amor-próprio.
E talvez seja justamente agora – neste instante abençoado em que nos encontramos sobre o solo fértil da nossa Mãe África, entre criadores e consumidores diretos, com os pés descalços no ventre que nos pariu – que se abra o tempo de voltar ao âmago da nossa essência humana.
Tempo de baixar as vozes do ruído digital e escutar, em comunhão, o pulsar da terra.
Tempo de perguntar juntos:
Que futuro queremos deixar para os que amamos?
Não apenas em ficheiro ou plataformas,
Mas em memórias que não se apagam,
Em nomes que se transmitem, em sementes que germinam.
Porque se não soubermos o que vale aquilo que carregamos no peito, alguém algures, transformará o nosso dom em moeda.
E pagará ao silêncio, enquanto deixa famintos de nós mesmos.
Dino D´Santiago, in Workshop “Propriedade Intelectual na era digital”, no âmbito da AME 2025, cidade da Praia, Cabo Verde
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