Sábado, 19 Abril 2025

Encostada à coluna

Cêrvir Cabuverd e servirse d´Kauverde

Maria Madalena de Jesus

 

Foi uma manhã inusual: encontrar no mesmo dia, com pouco minutos de intervalo, quando estava prestes a terminar a minha habitual caminhada vespertina, Cêrvir Cabuverd e Servirse d’ Kauverde, duas figuras distintas, apenas ligadas pela ligeira homofonia do nome e pela nacionalidade.

Conheci os dois em tempos e lugares diferentes. Tinha terminado a faculdade e regressado ao país quando conheci Cêrvir Cabuverd, umas quatro décadas e meia atrás. Profundamente culto, honesto, afável no trato, Cêrvir foi educado sob os preceitos de precisar ser útil e não de precisar ser feliz, acreditando que quanto mais útil somos, mais felizes seremos.

Assim, Cêrvir construiu e manteve uma forte teia de relações profissionais e de amizade no país e no estrangeiro, rodeando-se de jovens porque dizia que eles o tornavam útil. Desejava que eles se tornassem plenos cidadãos, com conhecimento, ativamente participativos, socialmente responsáveis e com um profundo respeito pela diversidade e compromisso com o bem comum.

Amiúdes vezes, convidava-os para a sua modesta casa, onde sempre morou. Aqui criou um espaço de profícuas, intensas e descomplexadas tertúlias. Discorriam sobre tudo e qualquer assunto: cultura e identidade, qualidade da educação, associativismo, municipalismo, justiça social, política e cidadania, meio ambiente e sustentabilidade, paternidade e maternidade responsável, relações humanas, género na sua abordagem tradicional e contemporânea, etc. Qualquer jovem podia levar um tema para discussão. Cêrvir dizia que se sentia extasiado (e acentuava esta palavra) com esses momentos por estar a dar, mas essencialmente por estar a receber, partilha essa indescritível nas palavras dele.

Cêrvir era respeitado e referenciado por muitos, sentimentos germinados pelo amor visível que ele nutria pelo seu país, seu alto comprometimento e prontidão em apoiar. Agora que os seus 75 anos tornaram os seus cabelos brancos, Cêrvir estava sendo devorado por uma grande angústia.

– Sabes Maria Madalena, este nosso arquipélago é frágil, muito frágil. Uns esquecem-se, outros ignoram e há quem ainda não tenha a mínima consciência disso. Há cerca de 80 anos, quantos antepassados nossos morreram de fome neste país? O nosso clima é o que é, a seca espreita-nos a cada dobra do tempo, a forte dependência do exterior é a poupança que temos no banco. A nossa população expressivamente jovem é uma grande vantagem para impulsionar o crescimento económico, a inovação e o desenvolvimento social. Mas onde estão os nossos jovens? Uns, que nem andorinhas, voam para longe à procura de locais mais favoráveis e com melhores condições de vida. Os que não saíram ou não tiveram forças para voar, estão por aí, metidos nas suas carapaças que nem tartarugas para se auto protegerem ou encontram-se amarrados ao sistema, sufocados por empréstimos feitos para adquirirem casa ou viatura, não se atrevem a questionar o establishment.

– Mas tu tens um grupo de jovens que te segue, respeita-te e valoriza a tua companhia. Estás a fazer um excelente trabalho com as tertúlias, Cêrvir.

– Obrigada Madalena, mas esses poucos jovens e eu somos apenas grãozinhos d’areia neste extenso areal e eu, o grãozinho mais velho, estou encharcado de apreensão. Olha a nossa democracia! Todos fingem que ela é real e verdadeira, mas ela foi transformada num argumento vazio, oco, malconduzido que produz muitas falácias e fomenta mediocridade. O país está a ser utilizado como trampolim para se ascender social, político e economicamente porque o dinheiro tornou-se a nova fé, a nova moral, a nova ética. Poucos são os que querem realmente servir o país. Temos que ter a capacidade de transformar este país para melhor, mas como fazer isso sem uma elite política intelectual forte e consolidada? Como fazer quando o vento que fustiga este país, só nos traz o silêncio dos nossos jovens universitários? Quem temos com capacidade para liderar, estimular o conhecimento e a inovação que este país precisa? Diz-me? Quem? Cêrvir tremia, com forte comoção na voz. Diz-me Maria Madalena, serei um cavaleiro de triste figura, criei moinhos de vento? Eu já não posso contar com a juventude. Minha cabeça opera  um comando com pilhas fracas. Os membros resistem e não querem lhe obedecer!

Apesar de ter tido várias oportunidades de trabalho no estrangeiro, Cêrvir recusou-as sempre, creditando que ficando seria mais útil ao país. Com a simplicidade, pragmatismo e humildade que lhe caracterizava, contou-me do livro que estava a escrever.

 – Será o meu legado à geração porvir. Conhecendo o passado podermos dialogar e interconectarmos com o presente. As redes sociais não conseguem realizar essa função porque sobrevivem da futilidade, da apologia do trivial e da mediocridade. Temos que saber fazer escolhas políticas, de inovação, de educação e ainda de valores sociais. Temos que voltar a focar-nos no servir o país e não na atual moda de servirmos do país, arrematou despedindo-se logo em seguida porque já passava da sua hora de recolher.

Profundamente impactada com o encontro com Cêrvir retomei a marcha, matutando sobre ele e na literalidade do seu nome. Prestes a alcançar a minha rua, esbarro-me com Servirse d’Kauverde que me cumprimenta alegremente. Ups! Não tenho mais espaço para vos relatar a minha conversa com ele nesta edição, ouvirão falar de Servirse d’Kauverde no próximo número deste Archipelago.

 

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